Pedro Moura, Expresso online (053 08/01/2020)
Estou à rasca. Há uns dias, ao terminar de fazer exercício, senti um caroço no peito, na zona inferior do esterno. Dei a palpar a outras pessoas, para ter a certeza que não estava errado na sensação, e todas sentiram algo que se assemelha a uma pequena massa com alguma mobilidade. Senti cair-me a vida aos pés, e uma miríade de prognósticos encheu-me a mente, cada um mais catastrófico que o outro. Acho difícil não ficar hipocondríaco numa situação destas.
Procurei de imediato as pessoas que conheço trabalharem em saúde a perguntar o que fazer, e unanimemente me encaminharam para a marcação de uma consulta de cirurgia geral num hospital privado. Poderia ter ido de imediato a uma urgência num hospital público, mas sinceramente pareceu-me descabido, pois não me estava a sentir mal, e tendo em conta o estado do SNS optei pela saúde privada.
Felizmente consegui agendar a consulta rapidamente, com um médico referenciado como excelente. Resta-me aguardar, e sujeitar-me ao que quer que seja.
E é neste aguardar que me encontro, cheio de incertezas, a tentar manter a calma, oscilando entre o tentar ‘pensar que está tudo bem’ e o ‘não interessa o que for, tens de aceitar e viver o melhor que conseguires’.
Pode-vos parecer exagerado, mas emocionalmente parece que estou às portas da morte. E para além do (ou devido ao) natural exaspero existencial, o que sinto e penso subitamente ganhou contornos estranhamento claros e concretos.
Por exemplo, sinto que todas as ansiedades e expectativas relacionadas com sucesso, bem-estar material, reconhecimento social, opinião dos ‘outros’, legado e posteridade não importam um chavo. A este nível, neste momento, só consigo ter no meu coração e espírito aqueles que amo e amei, só esses realmente interessam. De alguma forma eu já sentia isto, mas em escala residual. A agudização deste sentir neste meu contexto atual é quase inebriante, é algo que em meio a este terror da espera me enche de vontade de sorrir. Parece que antes de ter palpado esta massa no peito me preocupava mais e dava mais de mim a quem não importa que a quem realmente enche a minha vida de vida.
Não sinto ódio nem desprezo por ninguém que não seja este meu círculo interior, note-se. O meu humanismo e universalismo mantém-se intactos: todos são importantes, a aventura humana neste planeta e universo deve ser acarinhada e construída não deixando ninguém nem nada para trás. O que também se me agudizou foi a compaixão real por toda esta mole de gente, onde naturalmente me incluo, por ter a noção que na maior parte do tempo vivemos todos alheados daquilo que devem ser as nossas reais prioridades, entretidos com aversões e desejos que não são realmente os nossos, conduzidos em rebanho por não sei que mãos em direção não a uma qualquer glória mais ou menos eterna, mas ao inexorável pó.
Tenho a noção deste ridículo, mas em meio ao estado de nervosismo aterrorizado em que me encontro, e às tentativas emocionais e racionais de lidar com isto, de alguma forma sinto-me mais vivo, com uma sensação mais clara de significado para a minha vida. E penso na estupidez quotidiana que enquanto indivíduos vivemos ao corporizarmos diariamente o provérbio de que ‘só se dá valor ao que se tem quando se perde.’
A consulta é amanhã. Penso, pior caso possível, em quantos meses terei de vida. E penso também no que irá acontecer se isto não for nada.
Depois de Amanhã
A consulta (no privado) atrasou duas horas, entrei no gabinete do médico, mostrei o peito, expliquei o que havia palpado, o caroço, a mobilidade, os antecedentes oncológicos familiares, etc.
O médico levantou-se da cadeira, palpou o caroço, uma, duas, três vezes, e disse que não era nada, que podia estar descansado. O caroço mortífero que havia sentido era a base do osso esterno, que apresenta alguma mobilidade, nada mais. Sorri de alívio, enfraldei a camisa, apertei a mão ao médico, desejei-lhe boa sorte para uma noite que estava complicada de pacientes, e três minutos após haver entrado no consultório estava de saída, com a dupla sensação de alívio e de ridículo.
Ridículo não por ter ido ao médico devido a um caroço que senti no peito, achando que o meu fim estava traçado antes da hora prevista, mas sim por ter a clara sensação que a tal relação de prioridades pessoais que se haviam alterado quando eu ‘estava para morrer’ provavelmente voltarão para muito perto de onde estavam.
Ou seja, o esquecimento daquilo que parece sagrado, óbvio e indubitável quando estamos aflitos é rápido a atuar.
Em textos bem mais antigos já escrevi sobre o que denomino a ‘Auto-fraude’ (não relacionado com automóvel), o apossamento indevido de algo importante que é nosso por nós mesmos, para utilizações menos interessante. Isto acontece porque não temos as prioridades no lugar certo.
Seria talvez bom que nos lembrássemos mais vezes que estamos todos a morrer, mais cedo ou mais tarde. É o que irei tentar fazer, para tentar defraudar-me menos a mim mesmo.