José António Moreira, Expresso online (054 15/01/2020)

Para L., o dia não poderia ter corrido pior. Professora do ensino secundário, terminara o seu exaustivo dia de aulas. Ao volante da sua viatura, fazia o percurso de volta a casa quando, em rua apertada, a insensatez de um condutor circulando em sentido contrário a elevada velocidade a obrigou a guinar para a direita, abruptamente. Evitou o choque frontal, mas bateu contra o muro, de frente. Os “airbags” estouraram, amorteceram-lhe o choque. Saiu da viatura com a ajuda de circunstantes, combalida e nauseada.

Contacto telefónico com a companhia de seguros, a chegada do pronto-socorro, o pedido de comparência da polícia para tomar conta da ocorrência. Longas horas de espera, à mercê da curiosidade dos transeuntes. Uma familiar, médica, muito rotinada na assistência a acidentados, passou-lhe a forte mensagem de que “sempre que os ‘airbags’ disparem os sinistrados devem ser medicamente assistidos para despistar mal maiores no futuro”. Acatou a sugestão, foi à urgência do Hospital de S. João.

Descreveu a situação que ali a trazia. Foi avaliada, pulseira amarela no pulso, tempo médio de espera de 7 horas, como refletia o monitor colorido colado na parede à sua frente.Com sorte, conseguiu sair do hospital ao fim de cerca de 4 horas. Medicada, mas aliviada por não haver sinal de fratura.

Vinha combalida. A custo descreveu o cenário no interior da urgência, onde o amontoado de doentes, em macas e cadeiras de rodas, condicionavam sobremodo o trabalho dos dois médicos que asseguravam o serviço, e onde a falta de assistentes para conduzirem os doentes ao serviço de radiologia era fator não despiciendo como contributo para o tempo de espera. “Um autêntico manicómio, onde os médicos apresentam um olhar perdido, como se estivessem a flutuar acima do ambiente surreal que os circundava”, confidenciou.

No dia seguinte, ainda dorida, apresentou-se ao serviço, lecionou, para não prejudicar os alunos. Foi à secretaria da escola para entregar o processo que trouxera do hospital, o relatório médico e a cópia da ocorrência hospitalar, para que abrissem um processo por acidente de trabalho e ativessem o respetivo seguro. “Não está bem, senhora professora. O médico tem de escrever o respetivo relatório neste impresso”, e o funcionário passou-lho para a mão. Contra-argumentou que tinha sido uma emergência, que impossibilitaria ter passado previamente pela escola, que se anexasse o relatório que possuía ao dito impresso a prova dos factos estava efetuada, que … Nada feito, o funcionário fez-lhe saber que era a “Lei” que assim impunha, que nem era ele que iria avaliar o processo, que era melhor ela voltar ao hospital para falar com o médico. Não se conformou com a explicação, telefonou para a DGE – Direção Geral de Educação. O funcionário que a atendeu foi curto e seco: “É a ‘Lei’. Se o relatório do médico não estiver vertido no impresso oficial o seu processo não será, sequer, analisado.” Não soube, o dito funcionário, no entanto, indicar qual a “Lei” concreta que tal impunha.

Dirigiu-se ao hospital, munida do precioso impresso, em busca do médico que a atendera durante o episódio da urgência. A funcionária sorriu ao ouvir o seu pedido. Informou-a de que o dito médico só estaria no serviço de urgência na semana seguinte. No entanto, não lhe garantiu que, nessa data, ele tivesse disponibilidade para satisfazer o seu pedido administrativo.

Apeteceu-lhe desistir, esquecer o episódio, o médico, o impresso. Mas, agora, como lhe referira a funcionária da urgência, cairia sobre si o custo total do episódio hospitalar, que deveria serencargo da entidade seguradora. Conjeturou que a exigência em torno do dito impresso era uma forma de levar os segurados envolvidos a desistirem de acionar tal entidade. Até por isso, decidiu que iria voltar ao serviço de urgência na semana seguinte. Para ter a certeza de que seria atendida, nem descartava a hipótese de contactar a médica sua familiar, para aferir se conheceria algum colega que conhecesse o referido médico, que pudesse dar “uma palavrinha” ao mesmo. Sim, que pudesse meter uma “cunha”.

Este episódio é real. À data em que escrevo ainda não se conhece o respetivo desfecho final. Independentemente deste, devia fazer-nos pensar, como sociedade onde os recursos são sempre escassos, no desperdício gerado pela observância de um aspeto meramente formal – o preenchimento do dito impresso, em termos de tempo desperdiçado, custos de deslocação, “stress” emocional. Pense-se nos milhões de episódios de idêntica natureza formal-burocrática que em cada ano ocorrem, e é difícil imaginar a imensidão dos custos, sem proveito, que eles geram.

Simultaneamente, a “Lei” é amaldiçoada, por impor comportamentos desnecessários e “apenas complicar”, quando em boa verdade, na generalidade das situações, o que estará em causa, e deveria ser objeto de crítica, é a deficiente interpretação que a máquina estatal faz do espírito da Lei. Em tal contexto, até se consegue compreender o comportamento dos cidadãos que, desprotegidos, procuram na “cunha”, e outros meios de “desenrascanço”, questionáveis, o apoio para conseguirem sobreviver à compressão imposta por tal máquina.

Ainda há um longo caminho a percorrer para sermos, efetivamente, o país do Simplex. No dia a dia, o cidadão comum, na sua interação com a máquina estatal, sente na pele, com toda a violência, que o país em que vive é ainda (muito) Complex.