Ricardo Rodrigues, OBEGEF

Desde quando abandonamos os rostos e as suas lágrimas? Desde quando vibramos com a morte, com a dor e o sofrimento alheios? Quantos e quantas deixamos prostrados, deixamos para trás? Haverá corpos, identidades e famílias mais dignos; culturas e religiões, per se, sacralizáveis, condenáveis, demonizáveis ou impuras; “enfermos” menos merecedores de cuidados? Desde quando os nossos “eus” se tornaram pontos de referência para os “eus” dos outros? Onde moram as nossas ancestralidades e as nossas descendências nas narrativas e nos discursos? Desde quando nos concebemos produtos acabados? Desde quando deixamos de reconhecer o estrangeiro que habita em nós? Que partes do outro entendemos por estranhas? Quanto de estranho consideramos relevante para a sua desumanização? E nesse espaço de não ser, quanto valeria a sua dor e o seu sofrimento; como significar as suas lágrimas, perdas e lutos; qual a medida certa; como mensurar; qual a fórmula exata? Seria bastante uma simples perceção; uma singela perceção forjada numa singela manchete; de qualquer agência ou veículo? Uma perceção pelo valor de uma vida?Desde quando abandonamos os rostos e as suas lágrimas? Desde quando vibramos com a morte, com a dor e o sofrimento alheios? Quantos e quantas deixamos prostrados, deixamos para trás? Haverá corpos, identidades e famílias mais dignos; culturas e religiões, per se, sacralizáveis, condenáveis, demonizáveis ou impuras; “enfermos” menos merecedores de cuidados? Desde quando os nossos “eus” se tornaram pontos de referência para os “eus” dos outros? Onde moram as nossas ancestralidades e as nossas descendências nas narrativas e nos discursos? Desde quando nos concebemos produtos acabados? Desde quando deixamos de reconhecer o estrangeiro que habita em nós? Que partes do outro entendemos por estranhas? Quanto de estranho consideramos relevante para a sua desumanização? E nesse espaço de não ser, quanto valeria a sua dor e o seu sofrimento; como significar as suas lágrimas, perdas e lutos; qual a medida certa; como mensurar; qual a fórmula exata? Seria bastante uma simples perceção; uma singela perceção forjada numa singela manchete; de qualquer agência ou veículo? Uma perceção pelo valor de uma vida?

Aos indivíduos e aos grupos que assistem serenamente à morte silenciosa das identidades e dos corpos sem nome e sem prestígio social, as seguintes preleções:

Da dignidade (da pessoa) humana à proibição do retrocesso social

A dignidade (da pessoa) humana (Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, V. I, 2007, 99-100) “constitui (…) «dado prévio» («a precondição») da legitimação da República como forma de domínio político (…). A dimensão intrínseca e autónoma da dignidade” (“da pessoa”) “humana” [primeira dimensão] “articula-se com a liberdade de conformação e de orientação da vida segundo o projeto espiritual de cada pessoa, o que aponta para a necessidade de, não obstante a existência de uma constante antropológica, haver uma abertura às novas exigências do” humano e do “ser” pessoa “(…) que (…)” poderão “reclamar a necessidade de prestações (públicas ou privadas) (não correspondendo, assim, a “um dado fixista, invariável e, meramente, abstrato) [segunda dimensão]. Pressupõe, finalmente, “relações de reconhecimento intersubjetivo, pois a dignidade de cada pessoa deve ser compreendida e respeitada em termos de reciprocidade de uns com os outros (…)”  [terceira dimensão].

Enquanto valor - bem supremo / princípio enformador geral, autónomo e específico, nas suas múltiplas “irradiações físicas e espirituais” (“da pessoa”), delineia balizas, âmbitos e níveis de proteção/ de tutela. Neste quadro conformador, incontornáveis proibições, tais como, “a pena de morte e a execução de pessoas, a tortura e tratos ou penas desumanas e degradantes, as práticas de escravidão, de servidão, de trabalho forçado e o tráfico de seres humanos.” “(…) Já “a dignidade compreendida como dimensão aberta e carecedora de prestações (…) legitima e justifica a socialidade, traduzida, desde logo, na garantia de condições dignas de existência” (dimensões pluricêntricas de partilha social dos riscos).  Configurada a partir de um prisma ficto (constitucionalmente acolhido) projetado para uma experiência existencial (humana) condigna (resposta à pergunta: quais as condições mínimas de existência a uma experiência existencial condigna?).

Será, também, “a dignidade como reconhecimento recíproco, em conjugação com outros valores e princípios, “que está na base, por exemplo, de princípios jurídicos como o princípio da culpa e o princípio da ressocialização em matéria penal.”

A República sustentada na dignidade (da pessoa) humana, nesse valor - bem / princípio “impõe deveres especiais de proteção” a pessoas/ individualidades especialmente vulneráveis, seja por detenção (pessoa detida), deportação (pessoa deportada), desenraizamento (pessoa deslocada), por alteridade identitária (pessoa membro de minorias étnicas), por alteridade religiosa (pessoa membro de minoria religiosa), etc. (camadas interseccionais) (tutela das vulnerabilidades e dos processos de vulnerabilização). Igualmente “justifica a imposição de deveres públicos e comunitários (republicanos) de defesa da vida e integridade do ser humano contra práticas eugénicas de seleção de pessoas, transformação do corpo ou de partes do corpo em fonte de lucro, ou contra a venda forçada pelo vendedor pobre de órgãos do corpo a favor do comprador rico, alteração da identidade genética do ser humano mediante clonagens reprodutivas do ser humano e tráfico de seres humanos.”

Por fim, a dignidade (da pessoa) humana constitui “standard de proteção universal que obriga à adoção de convenções e medidas internacionais contra a violação da dignidade da pessoa humana e à formatação de um direito internacional adequado à proteção da dignidade” (“da pessoa”) “humana não apenas como ser humano individual e concretamente considerado, mas também da dignidade humana referente a entidades coletivas (humanidade, povos, etnias).”

Em boa verdade, a dignidade (da pessoa) humana enquanto valor - bem, princípio enformador geral, standard de proteção universal, bem como, enquanto proposta e garantia de efetividade, não tem nome, nacionalidade, etnia, fenótipo, sexo, género, expressão de género, orientação sexual, preferência partidária, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, estado civil ou análogo, idade, estado-condição-situação físico(a), psíquico(a), social, económico-financeiro(a), jurídico-penal, etc. Trata-se, pois, de um núcleo intangível, que se afirma como fundamento e critério de tutela das vulnerabilidades e dos processos de vulnerabilização de pessoas e grupos. A sua efetividade depende da localização na estrutura social e do estado e situação concretos, impondo-se, por via do (re)posicionamento jurídico-político, a criação de garantias mínimas necessária, proporcionais e adequadas (à medida – ou por aproximação) a assegurar uma experiência existencial condigna. (cf. artigos 13.º e 15.º da Constituição da República Portuguesa, mais adiante, CRP; artigo 1.º, 20.º e 21.º da Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, mais adiante, Carta).

Em conjugação necessária, e num espectro alargado, que deverá, pois, abarcar, numa complexa filigrana, considerando as inevitáveis linhas de interceção com os direitos, liberdades e garantias e os direitos fundamentais de natureza análoga (v. artigos 17.º e 16.º da CRP), os âmbitos económicos (v. artigos. 58.º a 62.º da CRP), social (v artigos 63.º a 72.º da CRP) e cultural (v. artigos 73.º a 79.º da CRP), e, sem prejuízo das margens necessárias de “liberdade de conformação” ou autonomia legislativa, em clara harmonização material com esse poder conformador, qual barómetro dignitário, o princípio da proibição do retrocesso social, decorrência do princípio da democracia económica, social e cultural (à luz do disposto nos artigos 1.º e 2.º da CRP). O princípio da proibição do retrocesso social “limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (…),” que ferem “o princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.” O reconhecimento desta proteção de «direitos prestacionais de propriedade», subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico” material imposto ao “legislador”, ao passo que constitui “uma obrigação de prossecução de uma política congruente com (…) direitos concretos e as expectativas subjetivamente alicerçadas”. “A violação do núcleo essencial efetivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada «justiça social»”. De facto, aquele poder conformador do legislador, nunca poderia “afirmar-se sem reservas,” sempre estaria sujeito “ao princípio da proibição de discriminações sociais e políticas antissociais.” Assim, “[a]s eventuais modificações” operadas deverão “observar os princípios do Estado de direito vinculativos da atividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais.” Ora, quando se vislumbram diminuídos ou afetados direitos adquiridos, “e isto «em termos de se gerar violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos (…), tendo em conta uma prévia subjetivação desses mesmos direitos.” Sendo, pois, de excluir “que se possa lobrigar uma alteração redutora do direito violadora do princípio da proteção da confiança,” ressalvados que sejam aqueles direitos, bem como, “quando, (…)”, segundo o autor Gomes Canotilho, “se pretenda atingir «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», ou seja, quando «sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios», se pretenda proceder a uma «anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial». Ou, ainda, tal como sustenta o autor José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito (…) se faça com violação do princípio da igualdade (“em estreita associação à igual dignidade” Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional em Estado de Direito democrático, 2012, 123) ou do princípio da proteção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito (…) cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade.” (v. Ac. Tribunal Constitucional Proc. nº 768/02 Plenário Rel.: Cons.º Luís Nunes de Almeida).

Do Acórdão n.º 785 /2025 (Processo n.º 881/2025) - Lei dos Estrangeiros: Breves Notas

No âmbito de um pedido de fiscalização preventiva urgente (v. artigo 278.º, n.º 8, in fine, da CRP e o artigo 60.º da  Lei n.º 28/82, de 15 de novembro - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, mais adiante, LTC) submetido pelo Presidente da República ao Tribunal Constitucional relativo ao Decreto n.º 6/XVII da Assembleia da República – com origem na Proposta de Lei n.º 3/XVII/1, da autoria do Governo, e no Projeto de Lei n.º 61/XVII/1, apresentado pelo Grupo Parlamentar do Partido CHEGA - que, em tempo relâmpago (processo legislativo tramitado de forma urgente), obliterando protocolos institucionais (“não tendo havido – efetivas – consultas e audições, nomeadamente audições constitucionais, legais e/ou regimentais – obrigatórias ou não -, ou, quando solicitadas, foram-no sem respeito pelos prazos legalmente fixados e/ou, em prazos incompatíveis com a efetiva consulta (…)”(v. Requerimento de fiscalização preventiva da constitucionalidade dirigido ao Tribunal Constitucional – mais adiante, “Requerimento”) - um órgão jurisdicional dotado de legitimação política, com competências para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, cujos entornos decisionais implicam, inevitavelmente, incursões e ponderações axiológicas e político-constitucionais, realizadas a partir da própria arquitetura do sistema democrático. A sua atuação visa assegurar a supremacia da Lei Fundamental, entendida numa tríplice dimensão: como texto jurídico vinculante, como pacto político estruturante da comunidade e como enervação consciencial pela comunidade, isto é, pelo processo dialógico e partilhado de interpretação constitucional que enraíza a Constituição no corpo vivo da sociedade (artigos 221.º a 224.º da CRP e a LTC - necessários a um processo sério de validação e significação de factos e intenções, ao bom esclarecimento, à partilha e reflexão, vem introduzir várias modificações ao regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (Lei n.º 23/2007, de 4 de julho), relativas ao regime do reagrupamento familiar (“a entrada e residência num Estado-Membro dos familiares de um nacional de um país terceiro que resida legalmente nesse Estado, a fim de manter a unidade familiar, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente”, al. d) do artigo 2.º da Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de setembro de 2003, mais adiante, Diretiva), entendido, e bem, à luz da Diretiva, como “meio necessário para permitir a vida em família. Contribui para a criação de uma estabilidade sociocultural favorável à integração dos nacionais de países terceiros nos Estados-Membros, o que permite, por outro lado, promover a coesão económica e social, que é um dos objetivos fundamentais da Comunidade consagrado no Tratado.”

Pela vocação contextual, a partir da exposição de motivos da Proposta de Lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República (v. Proposta de Lei n.º 3/XVII/1.ª, p. 2), o propósito último das alterações apresentadas extraível seria o de “reformar os mecanismos legais à disposição dos cidadãos estrangeiros para imigrarem para Portugal, adaptando a legislação às necessidades do País e à sua capacidade de acolhimento.” Impondo-se, assim, o reforço do combate às “rotas de imigração ilegal e de melhoria dos canais de imigração legal, em alinhamento com as necessidades de captação de talento e capital humano altamente qualificado.”   (v. Requerimento).

O Plenário do Tribunal Constitucional pronunciando-se, no concernente, aos pressupostos do reagrupamento familiar, traz à luz o tradutor fiel de uma narrativa do inimigo tornada discurso político, que, nem mesmo, a técnica legislativa pode esconder, nem as explorações comparatistas podem sustentar (v. Comunicado Acórdão n.º 785 /2025 - Lei dos Estrangeiros, mais adiante, Comunicado; Acórdão n.º 785/2025, Processo n.º 881/2025, Plenário Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa, mais adiante, Acórdão).

Vejamos o que o discurso do legislador propõe à comunidade e às individualidades visadas:

  1. A respeito do artigo 98.º:

               Artigo 98.º […]

  1. O cidadão com autorização de residência válida e que resida legalmente em território nacional tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família, menores de idade, que tenham entrado legalmente em território nacional e que aqui se encontrem, e que com ele coabitem e dele dependam.
  2. Os titulares de autorizações de residência concedidas ao abrigo dos artigos 90.º (“Autorização de residência para atividade de docência, altamente qualificada ou cultural”)*, 90.º-A (Autorização de residência para atividade de investimento”) e 121.º-A (“Beneficiários do «cartão azul UE»”)* têm direito ao reagrupamento familiar com os membros da família, que tenham entrado legalmente em território nacional e que aqui se encontrem, e que com ele coabitem e dele dependam.

*Nota: Diretiva (UE) 2016/801 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, relativa às condições de entrada e de residência de nacionais de países terceiros para efeitos de investigação, de estudos, de formação, de voluntariado, de programas de intercâmbio de estudantes, de projetos educativos e de colocação au paire; Diretiva (UE) 2021/1883, relativa às condições de entrada e de residência de nacionais de países terceiros para efeitos de emprego altamente qualificado, em vigor desde novembro de 2023.

  •  O cidadão com autorização de residência válida e que resida, há pelo menos 2 anos, legalmente em território nacional, tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que se encontrem fora do território nacional, nos termos do artigo 99.º, que comprovadamente com ele tenham vivido noutro Estado ou que dele dependam, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente.”

Com destaque,

Do n.º 1 do artigo 98.º, a obliteração da figura do cônjuge ou equiparado, facto que induzirá / promoverá, com todos os reflexos, “a desagregação da família nuclear do cidadão estrangeiro titular de autorização de residência válida, sendo, pois, “suscetível de conduzir à separação dos membros da família constituída desse cidadão estrangeiro, que resida validamente em Portugal há menos de dois anos” (Comunicado; Acórdão).

No n.º 3 do artigo 98.º, “a imposição de um prazo absoluto (de “forma indistinta e indiferenciada”) de dois anos até à apresentação do pedido de reagrupamento familiar com todos os membros da família maiores de idade que se encontrem fora do território nacional,” evidentemente “incompatível com a proteção constitucionalmente devida à família (…)” (“em particular à convivência dos cônjuges ou equiparados entre si e à de qualquer deles com os respetivos filhos menores de idade (…)” (artigos 36.º, 68.º, 69.º, 70.º da CRP)), à infância (artigo 69.º da CRP), à juventude (artigo 70.º da CRP), às individualidades vulneráveis em razão da idade (artigo 72.º da CRP), de limitação funcional (filhos maiores e ascendentes na linha reta do residente ou do seu cônjuge ou unido de facto, a seu cargo), (artigo 71.º da CRP), etc. Desconsiderando, igualmente, e apesar do disposto no n.º 3 do artigo 106.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, o “grau de ligação ao território nacional”, “a duração da sua permanência” e a “existência de outros laços familiares no país de origem, assim como” “o seu grau de inserção e desempenho no sistema de ensino frequentado (…)” (Comunicado; Acórdão).

Já no n.º 2 do artigo 98.º o legislador institui uma fórmula de diferenciação positiva para categorias específicas de migrantes, com um evidente potencial de estratificação, já que para todos os demais, com exceção do tratamento mais favorável aplicável a refugiados, requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional (regime específico), intensifica estratégias que obstaculizam seriamente a vida em família, contribuindo, assim, negativamente “para a criação de uma estabilidade sociocultural favorável à integração dos nacionais de países terceiros nos Estados-Membros,” dificultando a  promoção da “coesão económica e social (…)” (Comunicado; Acórdão).

Ponto reflexivo,

Não é, com certeza, uma abordagem inclusiva, integradora, zeladora, inclusivamente, dos interesses da família e dos menores, aquela que o legislador apresenta. Configura, antes, uma violação clara ao direito à unidade familiar, com afetação direta dos interesses de individualidade frágeis, como as crianças, maiores com limitações funcionais, idosos com comorbilidades, etc., e de viés estratificador, pelos motivos, critérios e diferencial de tratamento a que conduz, considerando, numa linha integradora inevitável, a localização das individualidades e dos grupos na sociedade de acolhimento (camadas interseccionais) e o correspondente impacto das barreiras nos processos de integração.

Os motivos subjacentes à discriminação inclusiva ou positiva ou diferenciação positiva (com um regime que apresenta um diferencial de flexibilização dos critérios de reagrupamento familiar), bem acolhida pelo coletivo do Tribunal Constitucional (segundo o qual: “não desproporcionada, nem discriminatória” – sustentada em critérios como o da objetividade, da razoabilidade e da proporcionalidade do meio ao fim), que reposicionam “os titulares de autorizações de residência concedidas ao abrigo” do disposto no artigo 90.º”, 121.º-A e, especialmente, do artigo 90.º-A, não pode, de facto e de direito, justificar a conformação de distinções que qualifiquem, nivelem ou signifiquem diferentemente a unidade da família constituída, assim como, o respeito pelos direitos à boa convivência entre os membros da unidade familiar, “em especial do direito fundamental dos pais conviverem com os seus filhos e de estes conviverem com os seus pais”. Veja-se, que “[a] família, nas suas múltiplas formas e configurações, constitui um alicerce fundamental na vida de todas as pessoas, independentemente da sua origem, cultura, interesses ou atividades.” A família constitui um espaço comum “de pertença, acolhimento e apoio mútuo, cuja real importância apenas varia, enquanto estrutura vital de afeto, segurança e estabilidade, em função da efetiva intensidade dos laços familiares e do real grau de dependência entre os seus membros.” Deverá, pois, o Estado “respeitar a convivência familiar de todas pessoas, sem qualquer distinção que não se apoie na preservação dos próprios direitos fundamentais de algum dos seus membros em particular, como sucede no caso dos menores de idade, quando retirados à família.” “No caso da separação forçada dos membros da família por expulsão de algum dos seus membros do país onde todos se encontram a residir, os efeitos emocionais, afetivos, sociais e económicos provocados pela cessação da convivência familiar, nomeadamente da convivência dos cônjuges (ou unidos de facto) entre si e de algum deles com filhos comuns menores de idade que permaneçam em território nacional, não estão sujeitos a qualquer variação de grau que dependa ou possa relacionar-se com o maior ou menor investimento económico a realizar no país pelo titular da autorização de residência. E, no que diz particularmente respeito à proteção das crianças, a obrigação do Estado Português em garantir que «a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem [...] que essa separação é necessária no interesse superior da criança» (artigo 9.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança) não é mercadejável, não podendo por isso conhecer distintos níveis de acatamento e concretização em razão do valor que a entrada e permanência do titular da autorização de residência aporta à economia nacional.” (Voto vencido - Joana Fernandes Costa - Rui Guerra da Fonseca - Dora Lucas Neto - António José da Ascensão Ramos - José João Abrantes - José Eduardo Figueiredo Dia).

Trata-se, deste modo, de um sistema de privilégio que categoriza acessos, amplificando posições jurídicas ativas em função de um dado estatuto, poder ou riqueza, comprometendo, às margens, de modo ético e jurídico-constitucionalmente inatendível / injustificável, a dignidade (da pessoa) humana, centrifugando direitos, liberdades, garantias, expectativas formadas e futuros, expondo individualidades e suas famílias, agudizando estados e processos já, per se, muito exigentes e desafiante.

Configura um real estatuto que parece contrastar com a suspeição que recai sobre os demais, em relação aos quais já se antecipa, qual “profecia autorrealizada”, a descivilização, o desprestígio, a subcategorização, a imprudência, a mentira e o insucesso.

Decorrerá do exposto, de todo em todo, o comprometimento do propósito firmado na exposição de motivos, bem como, o espírito da Diretiva, segundo a qual, e apesar do disposto no artigo 8.º: “[o]s Estados-Membros deverão dar execução ao disposto na presente diretiva sem discriminações com base no sexo, raça, cor, origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou crença, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.” (v. Requerimento).

Trata-se, de facto e de direito, de um rolo compressor de direitos liberdade e garantias estabilizados, com viés estigmatizador, a institucionalização da opressão real, inviabilizadora, ora, pela voz do Estado, como autoridade narrativa e discursiva, de qualquer forma de integração e, por maioria de razão, de ascensão social. Um flagrante retrocesso agoniado de antagonismos técnica e materialmente indefensáveis.

Apenas uma proposta demagógica, de fachada, falaciosa ou ilusionista de melhoria dos canais e dos processos (fórmula paternalista – nós conhecemos as vossas necessidades) poderia integrar “alterações, incidentes sobre um mecanismo essencial para a integração em sociedade e para a vida em família,” com um enorme potencial de restrição, obstaculização ou compressão, e “de forma desproporcional e desigual”, do “princípio da união familiar”, e em prejuízo dos mais vulneráveis, em especial, reiterando, do “superior interesse da criança”, assim, “forçada a lidar com separações prolongadas.” Uma proposta que desconsidera a dor e o sofrimento alheios, ainda que falaciosamente se proponha preveni-los.

Em boa verdade, mais uma vez, em total desalinhamento com supostos propósitos do Decreto e os resultados esperados, as modificações poderão provocar, com todo o potencial de exposição e vulnerabilização associado ao risco social sistémico a suportar ou transferir, “o aumento dos percursos migratórios irregulares por parte de outros membros da família que passam a estar excluídos do direito ao reagrupamento, como é o caso do cônjuge.” (v. Requerimento). Sem descurar, os compromissos internacionais vinculativos advenientes de instrumentos de direitos internacional e regional, atributivos de um estatuto de proteção especial às crianças, como sejam, “a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigos 9.º e 10.º), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigos 12.º, 23.º e 24.º); a Carta Europeia dos Direitos Sociais Revista do Conselho da Europa (artigo 19.º); o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (artigo 79.º/2) e a Carta (…) (artigo 7.º).” (v. Requerimento).

Parece-nos óbvio que condenar o sujeito migrante a viver sem (ou “a termo inicial”) um pilar essencial da sua realidade e experiência existenciais, a sua família, deveria revolver qualquer senso mínimo de humanidade, que, naturalmente, não se vê espelhado neste diploma, que, antes, apresenta um pano de fundo com marcadores que invariavelmente refletem privilégio para os mais bem posicionados e, para os demais, suspeição, desconfiança, e, quase sempre, com uma tónica utilitarista, que reduz o humano a vã mercadoria, sem nome, futuro e dignidade. 

Para agravar o quadro supramencionado, sobretudo em prejuízo dos não beneficiários de qualquer privilégio real, nas malhas reacionárias de um retrocesso social proibido, a amplificação dos prazos do pedido de reagrupamento, nos termos do n.º 1, do artigo 105.º, aos quais se somarão as possibilidades de prorrogação, totalizando 3 anos e 6 meses, assim, em total desalinhamento material com o standard europeu e regional de direitos fundamentais, não obstante, os distintos propósitos de cada prazo estabelecido (de moratória e decisional). Um iter que inevitavelmente conduzirá a um impedimento prático ao exercício do direito fundamental ao bom convívio familiar (à privação substancial do exercício do referido direito, assim, inviabilizado), por outras palavras, a uma retração real e efetiva da tutela global desse direito, não se tratando, pois, de simples burocracia, ainda assim, manifestamente desproporcionada face aos interesses hipotéticos do Estado, considerando o sacrifício imposto, em toda a sua extensão de nocividade e respetivas projeções no elenco de posições jurídicas ativas fundamentais, e a natureza sensível e prioritária dos direitos e interesses em causa.  (v. artigos 18.º, 36.º, n.ºs 1 e 6, 67.º, n.º 1, 68.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, da CRP).

  • A respeito do artigo 105.º:

Artigo 105.º  […]

  1. O pedido deve ser decidido no prazo de nove meses, podendo, em circunstâncias excecionais associadas à complexidade da análise do pedido, ser prorrogado pelo órgão competente para a decisão final por igual período, sendo o requerente informado desta prorrogação.

De facto, à soma do prazo de nove meses indicado, com possibilidade de prorrogação até dezoito meses, ao período de dois anos de espera previsto no n.º 3 do artigo 98.º, sem desconsiderar, claro está, os tempos da justiça administrativa, nas situações de indeferimento (v. reversão), não será, pois, “compatível com os deveres de proteção da família a que o Estado se encontra vinculado.” (v. artigos 18.º, 36.º, n.ºs 1 e 6, 67.º, n.º 1, 68.º, n.º 1, 69.º, n.º 1, da CRP). A operacionalização técnica do comando poderá densificar-se do seguinte modo: concluindo-se que “o requerente não preenchia os requisitos legais para o reagrupamento,” prevaleceria “legitimamente o interesse do Estado no controlo da imigração.” Todavia, reconhecido que seja o direito ao reagrupamento familiar, estaríamos a expor o titular a um período de três anos e meio (ou mais) de privação irreparável ao bom convívio familiar, especialmente “se estiver em causa a entrada no país do seu cônjuge ou unido de facto e este for progenitor comum dos filhos menores de idade que com aquele permaneceram em território nacional (…)”, sem descurar todos os casos possíveis de vulnerabilidade. (Comunicado; Acórdão)

Finalmente, e sem descurar outras incursões restritivas de direitos, liberdades e garantias pelo legislador, em clara violação da reserva de lei parlamentar, na senda da compressão, constrição dos direitos fundamentais, mais uma vez na filigrana reacionária de um retrocesso social proibido, a introdução adicional do pressuposto processual autónomo da comprovada irreversibilidade da atuação ou omissão da AIMA, IP. (“irreversibilidade da lesão”), assim, na banda decisional, figuraria como requisito específico do recurso à ação especial de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias (v. artigo 109.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro), instituindo-se, deste modo, um regime especial de tutela, significativamente mais restritivo, com evidência, para a promoção de “pretensões relacionadas com a autorização de residência”, em clara altercação, compressão do acesso, pelos administrados, ao “direito” e à tutela jurisdicional efetiva (direito fundamental), nos termos do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 268.º, n.º 4, da CRP (Comunicado; Acórdão)

  • A respeito do artigo 87.º B:

Artigo 87.º B

2 - Só é admissível o recurso à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, quando, para além dos pressupostos referidos no artigo 109.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a atuação ou omissão da AIMA, IP, comprometa, de modo comprovadamente grave, direto e irreversível, o exercício, em tempo útil, de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja tutela não possa ser eficazmente assegurada através dos meios cautelares disponíveis.

O recurso à ação especial de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, neste quadro conformacional específico, entre inúmeros considerandos e problemáticas, conduzirá a situações de inviabilidade técnica e material, pelo simples facto da situação concreta não consubstanciar “uma lesão irreversível do direito invocado, ainda que esteja em causa um direito, liberdade ou garantia pessoal”, igualmente estaria vedado o acesso à tutela cautelar, “na medida em que os pedidos, necessariamente provisórios, que ali se” fizessem seriam pedidos ilegais, já que “esgotariam, total ou parcialmente”, a pretensão (providencia específica) da ação principal. Acresce o facto de “a tutela principal não urgente, por via da ação administrativa, considerando o tempo de espera – que não tem sequer de ser excessivo, bastando que não exceda o prazo de três anos, que é aceite como sendo, em regra, justificado na jurisprudência do TEDH –, para a” prolação “de uma decisão num tribunal de 1.ª instância,” ser “claramente incompatível com a subsistência do direito quando é necessária tutela urgente.” Não estando em causa, pois, a eliminação do recurso, pelos interessados, ao instrumento de tutela, em especial, “dos cidadãos estrangeiros residentes em Portugal no âmbito do contencioso relativo às respetivas autorizações de residência,” vislumbra-se, todavia, uma significativa “restrição dessa possibilidade, comparativamente com o regime de acesso àquele meio de tutela avançada de direitos, liberdades e garantias que é mantido em termos gerais.” Colocando, assim, “em causa a própria subsistência do direito – como ocorrerá, pelo menos, em todos os casos de reagrupamento familiar de familiares fora do país –,” pela verificação do preenchimento do requisito específico da irreversibilidade da lesão, “no contexto das pretensões relacionadas com a autorização de residência”, que conduzirá a um evidente efeito constritor das posições jurídicas ativas, amplamente estabilizadas, vertidas nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP (Comunicado; Acórdão).

Das (“novas”) exigências adicionais operacionalizadas para a comprovação de alojamento

Aos efeitos constritores de direitos fundamentais mencionados, sempre se somariam renovadas exigências administrativas, que, operando como requisitos viabilizadores, evidenciam-se como mecanismos constritores de controlo, que oneram, de modo subversivo, sem partilha efetiva de custos e riscos, o “elo mais frágil” da relação arrendatícia (titular do direito à habitação – artigo 65.º da CRP), comprometendo, assim, o equilíbrio contratual já, per se, desequilibrado, visto tratar-se de tipo contratual constitutivo das relações jurídico-contratuais assimétricas, ocupando o expoente da relação jurídica (posição jurídica económica, posição de domínio jurídico e informacional), o locador ou sublocador; a que se somará, fatalmente, a condição de migrante e, em especial, de requerente de “pedidos de concessão de prorrogações de permanência, de autorizações e renovações de residência e de estatuto de residente de longa duração”.

Na base, como, infelizmente, tem sido recorrente, as narrativas e os discursos, ora, em torno dos atestados de residência, que transitaram de simples instrumentos administrativos, para objetos de disputa simbólica sobre confiança institucional, justiça social e política migratória. Narrativas que incendeiam perceções de desconfiança ao dramatizar casos pontuais, que, de facto e de direito, não podem, nem devem ser negligenciados, já que estão, não raras vezes, associados a um uso abusivo do instrumento tendo em vista a exploração económica da pessoa do migrante, ampliando-os, de forma a corroer a fé pública e justificar, de modo subversivo, a intensificação do controlo burocrático. Note-se que o impacto sobre a credibilidade do atestado de morada não visou onerar a entidade emitente, antes transferir para a pessoa do migrante, novos encargos probatórios, fragilizando, especialmente, a posição jurídica dos mais vulneráveis. Bastaria, simplesmente, à base instrutória (preferencialmente, comum, entre freguesias), a coligir e arquivar, que poderia inclui, uma seleção comutativa de elementos, entre os quais, a prova testemunhal, contratos de trabalho, de arrendamento, de subarrendamento, de comodato, etc., de fornecimento de água, energia, etc., acompanhando, assim, a Resolução da Assembleia da República n.º 6/2025, de 14 de janeiro, complementada pela declaração do interessado, associar dinâmicas suplementares à boa conformação da perceção pela entidade documentadora, destinadas a conferir ao instrumento força probatória plena, nos termos vertidos no artigo 371º, n.º 1, do Código Civil.

O Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 05 de novembro, que Regulamenta o Regime jurídico de entrada/permanência/saída/afastamento estrangeiros, na sua atual versão, passa a estabelecer no corpo do artigo 42.º - O - aditado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/2024, de 17 de janeiro, que, no seu decreto preambular se propõe a procede “à modernização e simplificação dos procedimentos administrativos com vista a garantir que a AIMA, I. P., possa instruir e decidir os processos relativos à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional de forma atempada e com requisitos de segurança acrescidos” - exigências adicionais de comprovação de alojamento, que, por sua vez, terá que ser demonstrada, “[q]uando não seja possível a consulta às bases de dados dos serviços competentes” (artigo 42.º A, n.º 2), “através dos seguintes elementos e meios”: a) [d]eclaração, sob compromisso de honra, da morada de residência, com menção da situação jurídica subjacente ao direito de uso do imóvel; e b) [c]onsulta à base de dados do IRN, I. P., nas situações de propriedade ou usufruto do imóvel ou consulta às bases de dados da Autoridade Tributária nas situações em que seja arrendatário, subarrendatário ou comodatário; ou c) [q]uando não seja possível aceder à informação nos termos previstos na alínea anterior, mediante certidão de registo predial ou disponibilização do respetivo código de acesso para comprovar o direito de propriedade ou o direito de usufruto, ou declaração do senhorio do imóvel ou da entidade alojadora, consoante a sua natureza, com menção da situação jurídica subjacente ao direito de uso do imóvel, com respeito pelo n.º 8 do artigo 51.º (…)” (negrito nosso), segundo o qual, “(…) a apresentação de qualquer pedido e a prática de quaisquer atos necessários à instrução do respetivo procedimento, por pessoa singular ou coletiva, independentemente da sua natureza, exige assinatura eletrónica qualificada nos termos da legislação aplicável e, quando legalmente possível, certificado de atributos profissionais.”

O legislador adensa, nos termos indicados, o ónus probatório do migrante/estrangeiro, relativamente à demonstração do alojamento.

À primeira vista poderíamos antecipar vantagens, como a celeridade, já que, à partida, do acesso pela entidade administrativa AIMA, I. P. a bases de dados (cruzamento) resultaria a desoneração do migrante do esforço de coleta de certos elementos documentais, agilizando, assim, as dinâmicas processuais, por via da desburocratização; a segurança, prevenindo-se o risco de fraude documental ou de “moradas fictícias” (v. artigos 42.º A, n.ºs 1 e 2, e artigos seguintes). Por outro lado, a entidade administrativa AIMA, I. P., passa a ter uma capacidade de escrutínio potencialmente mais intrusiva sobre a vida privada da pessoa do migrante e da sua família; migrantes em situações habitacionais precárias (ex.: arrendamento informal, subarrendamento não declarado, alojamento em condições irregulares, etc.) estarão fatalmente expostos, pelo estado de total prostração irresistível a uma inevitável inviabilização do seu pedido, e isto apesar, entre outros instrumentos, do dever de comunicação do alojamento, originariamente previsto no artigo 16.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho (ora, na sua última versão promovida pelo Decreto-Lei, n.º 41/2023, de 2 de junho), com as cominações previstas no artigo 202.º do mesmo diploma, e da institucionalização de mecanismo de comunicação/ denúncia (à Autoridade Tributária) concedido aos materiais arrendatários e subarrendatário (CLC – Comunicação do Locatários e Sublocatário), “sempre que os locadores e sublocadores não cumpram a obrigação de comunicar à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a celebração, alteração, ou cessação de contratos de arrendamento, (…) subarrendamento (…)” e promessas (…)” (v. artigo 60.º do Código do Imposto de Selo (IS)), que, todavia, deverão ser instruídos com o contrato de arrendamento ou subarrendamento (…), bem como, com os “documentos que comprovem os elementos comunicados (artigo 2.º, n.º 3) (v. Portaria n.º 106/2025/1, de 13 de março). Note-se que o contrato de arrendamento, modalidade do contrato de locação (v. artigo 1023.º do Código Civil), pelo qual uma das esferas de interesses (senhorio ou locador), se obriga a proporcionar a outra esfera de interesses (inquilino ou arrendatário) o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição (prestação pecuniária periódica, a renda), apresenta-se, no espectro negocial, como bilateral, sinalagmático, oneroso, comutativo, de execução continuada, obrigacional, assumindo natureza formal, e sob pena de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 219.º, 220.º e 1069.º, n.º 1 do Código Civil, ainda que seja de admitir prova da sua existência, “por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses”, isto, “na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário” (n.º 2) - recorrente nas relações jurídico-contratuais assimétricas. Com relevo, a natureza verbal do contrato, muito comum nos casos de arrendamento de cómodos habitacionais, está, não raras vezes, associada a um privilégio informacional e documental, designadamente, concernente às condições legais de habitabilidade e segurança, que vulnerabiliza a parte mais débil da relação jurídico-contratual constituída (o arrendatário).

Por último, uma nota sobre figura contratual próxima, ora, o contrato de comodato, com regime estabelecido nos artigos 1129.º a 1141.º do Código Civil. Um acordo pelo qual uma das esferas de interesse (comodante) entrega gratuitamente a outra esfera de interesses (comodatário) certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir. Trata-se de um contrato gratuito, intuitu personae, obrigacional, que apresenta uma natureza não formal (artigo 219.º do Código Civil), entendendo-se por celebrado pelo simples acordo de vontades negociais, acompanhado da entrega da coisa móvel ou imóvel (natureza real, quod constitutionem), não estando a sua validade ou eficácia dependentes de registos de qualquer natureza.

Tratando-se de bens imóveis, por razões de segurança jurídica, para assegurar a boa comprovação institucional da posição jurídica dos intervenientes contratuais (no caso, a AIMA, I. P.), a boa clarificação da gratuitidade da cedência e do enquadramento jurídico-tributário do imóvel, a formalização por escrito e respetivo registo do contrato de comodato, junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, apresenta-se como altamente desejável – recomendável, sendo que deverá ser promovido, presencialmente, na respetiva repartição de finanças - rei sitae – ou recorrendo ao e-balcão, através de requerimento submetido para o efeito, acompanhado de cópia digitalizada do contrato. No entanto, atendendo, especialmente, à natureza da figura contratual, não parece, para a referida entidade, entre inúmeras abordagens técnicas realizadas, consensual/ pacífica essa possibilidade, mesmo nos termos apresentados, em afetação clara da necessária previsibilidade, inviabilizando, assim, uma das alternativas propostas de comprovação. Quando o imóvel, objeto de comodato (com as respetivas menções), seja utilizado como fundamento de contrato de arrendamento, neste caso, deverá ser, obrigatória e condicionalmente, objeto de bom registo junto da Autoridade Tributária e Aduaneira. É, igualmente, desejável-recomendável, especialmente, tratando-se de comodato de bens imóveis de longa duração, a sua formalização por escrito e registo junto da Conservatória do Registo Predial.

Analogamente ao mencionado a respeito dos contratos de arrendamento, subarrendamento e correspondentes promessas, estará aqui, mais uma vez, o legislador a qualificar, duplamente, a prova da existência do contrato (sobreprova), desconsiderando parcialmente a lógica jurídico-civilística, nomeadamente, no que tange à liberdade de meios de prova (excluindo indiretamente realidades contratuais socialmente comuns), criando uma barreira probatória desafiadora. Trata-se, pois, de um verdadeiro “efeito de invisibilidade administrativa” que expõe, de modo evidente, os migrantes, em especial os mais vulneráveis, forjando o quadro do retrocesso social em matéria de proteção da população migrante.

Pelo discorrido, a alegoria da “simplificação” poderá, paradoxalmente, traduzir-se em maior complexidade burocrática, que atinge fragrantemente aqueles que deveriam ser titulares ativos da boa tutela do Estado, os migrantes mais vulneráveis. Em verdade, até mesmo as afamadas promessas de simplificação técnico-informática poderão estar goradas pela não interoperabilidade funcional entre sistemas.

O acento tónico sempre radicará sobre a componente humana, flagrantemente obliterada nas narrativas e nos discursos pelos decisores políticos. Em boa verdade, para muitos migrantes, sobretudo em condições de maior vulnerabilidade, a exigência de prova robusta de alojamento representa um sério obstáculo à boa regularização. A saber: constitui fator de exclusão, já que grande parte dos migrantes, subalternizados na voz e nas dores, são “empurrados” para a informalidade, perpetuando-se, por efeito, situações de irregularidade, passíveis de serem exploradas por aqueles que deveriam ser o foco especial da intervenção pública; configura um quadro de pressão-tensão sobre senhorios/entidades alojadoras/ comodantes / outros, que, por sua vez, passam a assumir responsabilidade declarativa, podendo recusar colaborar, e com recurso a inúmeras estratégias, deixando o migrante numa posição dramática, alimentando a, já amplamente partilhada, sensação de total impotência.

A par do exposto, as implicações sancionatórias administrativas aplicáveis, no âmbito do quadro normativo da Lei n.º 23/2007, de 04 de julho. A saber: a permanência ilegal -  v. artigo 192.º; a falta de declaração de entrada – v. artigo 197.º; e a falta de apresentação do documento de viagem – v. artigo 199.º. A concatenar, as diligências a empreender pela “Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF) na Polícia de Segurança Pública (PSP)”, “uma unidade especial no âmbito das missões da PSP, em matéria de estrangeiros, fronteiras e segurança aeroportuária, composta por serviços centrais e serviços desconcentrados.” (artigo 2.º, n.ºs 1 e 2 (respetivamente), da Lei n.º 55-C/2025, de 22 de julho), a quem compete, designadamente, “[v]igiar, fiscalizar e controlar as fronteiras aeroportuárias, assim como a circulação de pessoas nestes postos de fronteira” (al. a)); “[f]iscalizar a permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional, na área de jurisdição da PSP” (al. b)); “[i]nstruir e gerir os processos de afastamento coercivo, expulsão, readmissão e retorno voluntário de cidadãos estrangeiros, bem como elaborar normas técnicas com vista à uniformização de procedimentos” (al. )); “[i]nstruir os processos de contraordenação relativos às infrações em matérias que recaem sob a sua competência no âmbito do regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional” (al. d)). Sem deixar de consignar, com extrema preocupação, os silêncios comprometedores da instituição AIMA, I. P., que é incapaz de responder às necessidades informativas e de orientação de quem legitimamente e pacientemente a procura.

As dimensões de uma proposta de “modernização” séria só se farão benéficas, segundo o primeiro ótimo social, se forem acompanhadas por uma política pública inclusiva e efetiva de habitação e de apoio/suporte (holístico) informacional e documental, caso contrário, o efeito prático da modernização corre o risco de se transformar num circuito opressor (de restrição – constrição – condenação) disfarçado de segurança, penalizando sobretudo os migrantes mais vulneráveis e condenando-os à informalidade, com repercussões sociais e aumento da sua vulnerabilidade, evidenciando a lógica selvática da máxima: “forte com fracos, fraco com os fortes”.

O adensamento do ónus probatório imposto aos migrantes releva-se constitucionalmente questionável. Sob o mote da modernização simplificadora e securitária, emerge um processo de diluição e centrifugação de direitos fundamentais, assim, um retrocesso social velado. O legislador, ao invés de simplificar, complexifica e agrava vulnerabilidades, tornando a regularização habitacional uma barreira quase intransponível para quem vive fora dos circuitos formais do mercado de arrendamento, o que configura uma afronta à dignidade (da pessoa) humana e ao direito à habitação, e constitui não apenas uma violação indireta, mas, de facto, a erosão estrutural do princípio da não discriminação (v. artigos 1.º, 2.º, 65.º, 13.º e 18.º da CRP; artigo 34.º, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Sob a retórica da simplificação e da segurança, acaba por produzir, com um grau ostensivo de previsibilidade, exclusão, desigualdade e vulnerabilização acrescida de pessoas já em condição de vulnerabilidade estrutural, comprometendo, assim, nos seus alicerces, o princípio matricial do Estado de Direito Democrático.

Uma última referência, na senda do reforço e exploração do fosso estatutário promovido pelo atual governo, ora, tendo como alvo a população migrante mais significativa, com contribuições documentadas para o desenvolvimento do país, quer de ordem demográfica, no mercado de trabalho, em setores estratégicos, como a tecnologia e a saúde, passando pelos comércio e serviços, com destaque para o turismo, quer para a sustentabilidade da Segurança Social, com contribuições que representam 36.7% do total das contribuições de população migrante, que, no ano de 2024, ascendeu a 3645 mil milhões de euros (, (Sara Gerivaz, Jornal de Notícias, Cinco vezes mais do que recebem. Contribuições de imigrantes duplicam em quatro anos, 3 de fevereiro, 2025 às 06:45). Um ataque direto às posições jurídicas ativas – no âmbito da tipologia de Estatutos a atribuir, no caso português, o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres e (ou Estatuto de igualdade) de Direitos Políticos (neste último caso, o migrante deverá ter uma autorização de residência há pelo menos três anos – v. artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 154/2003)  – atribuídas reciprocamente, entre Portugal e o Brasil, ao abrigo do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, por via da suspensão ou interrupção (sem prazo) da publicação dos despachos (em Diário da República) concernentes ao referido Estatuto (sem um posicionamento do Governo, nem da entidade administrativa AIMA. I.P.), com impacto severo sobre a sua efetividade. Por efeito, são de assinalar, atrasos significativos e níveis elevados de desconfiança, insegurança e incerteza em relação ao futuro do Tratado e, por consequência, ao futuro da população migrante brasileira. 

Última nota reflexiva,

A inércia de quem se deixa conduzir por narrativas e discursos palatáveis, mas mortificadores de identidades, vidas, sonhos e futuros, não se compadecerá com as falaciosas virtudes de um autoproclamado agente de/do bem ou da justiça.

O ódio, enquanto paixão humana, a ira, a raiva e a violência (seus ímpios marcadores (in)fiéis) são orgásticos, inebriantes, insaciáveis, transfigurantes, e, seguramente, condenáveis, seja moral, ética ou juridicamente, com níveis de imputação que ferem de morte ancestralidades e memórias, atribuíveis a inúmeros títulos, perpassando nomes, gerações e intencionalidades.

A cegueira a que conduz o discurso do inimigo merecerá, com certeza, em abono dos bons valores democráticos, da liberdade, da igualdade, da justiça, da participação, da diversidade, do pluralismo, da dignidade, da solidariedade, da responsabilidade cívica, etc., a mobilização de todos os esforços e estratégias à obtenção do antídoto certo. Mas como rivalizar com inércia? Como rivalizar com o conforto da ignorância? Como tentar-desafiar alguém a provar do “fruto permitido”, a respirar do óbvio? E se esse saber comprometesse os pilares inquestionáveis do referencial de valores e princípios do sujeito? Ora, como rivalizar com crenças absolutas? Como instigar um espírito fechado ao diálogo aberto?

Eternos desafios para cidadãos ativamente comprometidos, com particular incidência sobre os agentes públicos — incluindo dirigentes, funcionários, membros de órgãos de soberania, docentes, formadores e pedagogos — cuja atuação deve pautar-se pelo contínuo compromisso com o interesse coletivo, contrapondo-se seriamente a qualquer narrativa que divida, antagonize ou fragmente a comunidade.

Urge recuperar a conexão vibracional perdida com o óbvio. O óbvio vibra com as emoções. O óbvio configura o encantamento mais fiel da sedução mais astuta.

Urge, igualmente, questionar o que podemos dar por garantido nesta e noutras vidas?

A democracia e a serenidade, com certeza, não seriam escolhas prudentes.

Mais uma razão para recuperar as verdades de “Monsieur de la Palice”.

Repare-se que as leituras, os níveis de entendimento e compreensão dos fenómenos e realidades são altamente variáveis, pelas lentes de cada sujeito histórico, muito além da fecundidade dos florescimentos práticos da crueldade humana.

Seria assim tão obvia a dor /o sofrimento de um inimigo / uma ameaça? 

Onde residem os centros de legitimação de cada um desses conceitos?

Da autoproclamação à forja de perceções, um caldeirão de oportunidades para a deflagração do caos.

Urge tornar tangível o discurso, no corpo, na mente e na alma. Trazendo os “eus” do sujeito, com as suas dores, sofrimento e imperfeições, para a experiência reflexiva. Uma imersão agoniada pelos seus demónios, desejos e iniquidades.

Urge trazer para as mentes e púlpitos da vida as questões mais comuns e transversais em torno da existência e da dignidade humana.

Urge, e para a posteridade, institucionalizar visceralmente a inquietude e a humanitude.

O hoje desvanecido entre os dedos, enlameado pelos sorrisos extasiados pelas paixões perversas, atinge diariamente corpos, identidades, famílias e futuros.

As marcas de sangue estão nas nossas mãos. A culpa, nas intenções, nas inércias e nas concessões.

Marcas na alma daqueles que não abdicam dos seus privilégios para o bem de todos (igualdade dignitária).

No amanhã não será o outro o sujeito incompreendido, o transgressor, o indigno, o inimigo, a ameaça. E os motivos ou as razões justificativas, esses, serão totalmente irrelevantes.

Nesse presente, já se esgotaram prazos, folhas, vidas, sangue e ouro.

A liberdade foi tomada!

E já não existe mais ninguém para contestar! (v. Martin Niemöller)

       …A próxima linha é tua…