Miguel Viegas, OBEGEF
Entre o rearmamento, o alargamento, a dívida e os cortes, a UE tenta reinventar o seu orçamento. Mas sem travar a fraude, nem a política de coesão resistirá à nova era de austeridade silenciosa.
A Comissão Europeia apresentou em junho as suas propostas para o próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia, que vigorará entre 2028 e 2035. Para já, trata-se de uma proposta que terá de merecer aprovação do Conselho e do Parlamento Europeu. O debate já começou e promete ser turbulento. Pela frente, estão quatro grandes desafios orçamentais que se entrelaçam num nó difícil de desatar: a resistência dos países do Norte em aumentar contribuições, a nova prioridade da defesa, a inevitabilidade do alargamento e a fatura do fundo NextGenerationEU, que começa a vencer já em 2028.
O primeiro desafio é político e orçamental: os chamados “contribuintes líquidos” – como a Alemanha, os Países Baixos, a Áustria ou a Suécia – resistem a qualquer aumento da sua fatia para o orçamento comum. Não só não querem pagar mais, como alguns querem pagar menos. Esta posição, embora previsível, entra em colisão direta com as novas necessidades da União. A principal delas é o reforço da capacidade de defesa europeia, exigida por um contexto internacional crescentemente instável. Pela primeira vez, a Comissão propõe fazer da Europa um ator relevante em matéria de armamento, com recursos próprios para apoiar a indústria militar e a autonomia estratégica. Isso custa dinheiro. E muito.
A segunda frente é geopolítica: o alargamento não pode continuar a ser adiado. Ucrânia, Moldávia e países dos Balcãs Ocidentais esperam por uma adesão cada vez mais próxima, mas que implica custos avultados. A entrada de novos Estados-membros, geralmente com rendimentos abaixo da média da UE, exigirá mais fundos estruturais e agrícolas – precisamente aqueles que a UE já tem dificuldade em manter nas atuais condições. Para além da Ucrânia, Moldávia e dos países dos Balcãs Ocidentais (como Montenegro e a Macedónia do Norte, já em negociações de adesão), a Bósnia-Herzegovina e a Geórgia são também candidatas reconhecidas, embora com processos mais incipientes. A Comissão Europeia já assumiu que a UE deverá estar preparada para um novo alargamento até 2030, o que exigirá uma profunda reforma do orçamento comunitário.
Terceiro, o empréstimo comum que deu origem ao NextGenerationEU durante a pandemia terá de começar a ser reembolsado. Até agora, os Estados-membros apenas têm suportado os encargos com juros, mas a partir de 2028 inicia-se o reembolso do capital, com um impacto orçamental significativo. A Comissão Europeia estima que o reembolso do capital (além dos juros já em curso) poderá implicar até €15 mil milhões por ano, em valores médios, a partir de 2028, dependente da evolução da taxa de juro. Sem novas “receitas próprias” (como impostos europeus), a amortização da dívida colocará ainda mais pressão sobre os orçamentos nacionais ou sobre cortes noutros programas.
Face a tudo isto, começa a ser admitido um cenário de cortes radicais na Política Agrícola Comum (PAC) e nos Fundos de Coesão. A ideia que ganha força é a de fundir as duas grandes políticas redistributivas da UE num único instrumento de desenvolvimento territorial. O risco é real: a simplificação administrativa pode esconder uma desvalorização das políticas tradicionais, implicando menor transparência e maior vulnerabilidade a fraudes.
O próximo QFP será, por isso, um teste à capacidade da União de proteger os seus recursos de fraudes e abusos, num contexto de crescentes exigências orçamentais. A fraude com fundos europeus — incluindo os estruturais, agrícolas e o próprio NextGenerationEU — continua a representar perdas relevantes. Segundo o Relatório Anual de 2024 do OLAF (Organismo Europeu de Luta Antifraude), foram detetadas fraudes lesivas do orçamento europeu no valor de 1,5 mil milhões de euros só nesse ano. A EPPO (Procuradoria Europeia), entretanto, abriu mais de 1.200 investigações, estimando um impacto potencial superior a 19 mil milhões de euros. Num cenário de possíveis cortes e consolidação orçamental, cada euro desviado por corrupção, má gestão ou fraude representa não apenas uma perda financeira, mas um enfraquecimento da legitimidade das políticas europeias. Reforçar os meios humanos e técnicos de controlo, melhorar a cooperação entre instituições nacionais e europeias, e garantir maior transparência na execução orçamental não são meros detalhes administrativos: são condições essenciais para que a política de coesão e os novos investimentos estratégicos resistam à erosão orçamental e política.