Óscar Afonso, Expresso online
A principal questão, por isso, é de longo prazo: como passar de 2% para 3,5% do PIB em despesa com defesa na componente tradicional até 2035 sem comprometer o financiamento das áreas essenciais como a Saúde, a Educação e as pensões
Neste artigo mostro como podemos compatibilizar o aumento da despesa com defesa e o Estado social.
A cimeira da NATO (sigla em inglês da Organização do Tratado do Atlântico Norte), realizada em Haia nos dias 24 e 25 de junho, aprovou uma meta ousada de despesa com defesa a realizar pelos seus membros, prevendo que cada país aliado dedique 5% do PIB à defesa até 2035.
Esta nova meta reparte-se em duas componentes:
(i) 3,5% do PIB (70%) referente ao “core defence” (forças, equipamentos e operações), a componente tradicional, que assim regista uma subida significativa face à anterior meta de 2% definida em 2014, e
(ii) 1,5% do PIB (30%) numa nova componente de investimentos relacionados com defesa, segurança e resiliência, abrangendo infraestruturas críticas e redes (incluindo telecomunicações, cibersegurança e energia, nomeadamente), prontidão civil e resiliência (como proteção civil e saúde, por exemplo), e fortalecimento da base industrial e tecnológica (onde se poderá incluir, por exemplo, investimento em exploração de terras raras, segundo especialistas na matéria, ou até inovação em materiais).
Isto significa que esta segunda componente funciona como uma espécie de ‘caixa’ onde cabe muita coisa e, por isso, não será muito difícil aos estados atingir a meta com alguma ‘criatividade’, com a vantagem de serem investimentos importantes e vários deles terem sido descurados num passado recente – basta pensar na crise pandémica, com a falta de materiais para produzir vacinas na Europa, ou na presente guerra tarifária, em que as terras raras são usadas pela China como arma negocial importante.
No caso de Portugal, investimentos no setor da saúde, na exploração e refinação de lítio (terra rara), ou mesmo o novo aeroporto (no âmbito das infraestruturas críticas) – se vier mesmo a avançar –, poderão caber nessa ‘caixa’ e permitir atingir a meta de 1,5% do PIB com relativa facilidade.
Por isso, centro a minha análise na capacidade de Portugal alcançar a nova meta de 3,5% na componente tradicional – forças, equipamentos e operações – sem prejudicar o Estado social.
Antes disso, faço notar que o novo Acordo da NATO prevê que cada país submeta um plano credível e calendarizado com os investimentos e capacidades previstos e a trajetória rumo às metas acordadas, conferindo a flexibilidade necessária para serem acomodados dentro das especificidades orçamentais de cada membro. Em 2029 está prevista uma revisão estratégica intercalar para avaliar o progresso e ajustar metas e trajetórias, se necessário, tendo em conta o contexto geopolítico da altura.
O governo de Portugal comprometeu-se atingir já em 2025 a meta de 2% do PIB na componente tradicional – que antes previa alcançar apenas no final da década –, face a um valor orçamentado pouco acima dos 1,5% registados em 2024. Tal será possível com relativa facilidade, através de reclassificações de despesa e alguma antecipação da execução da Lei de Programação Militar, tirando partido das folgas orçamentais atuais.
O problema será se a economia europeia e portuguesa crescerem menos do que o esperado, caso em que a folga poderá não chegar e o investimento público deverá ser sacrificado para salvar a meta orçamental, como no passado, com a ressalva de que terá de haver especial cuidado para não prejudicar o cofinanciamento necessário para projetos com fundos europeus, sobretudo os do PRR, a executar até 2026. A situação externa registou melhorias com o desanuviamento do conflito entre Israel e Irão; contudo, persiste incerteza quanto à estabilidade desta trégua e à evolução da guerra tarifária, fatores dos quais dependerá, em grande medida, o impacto sobre o crescimento económico da Europa e de Portugal.
Quanto ao futuro próximo (2025 e 2026), sabe-se apenas que o governo não prevê reprogramar verbas do PRR para novos projetos de defesa. Considero uma decisão prudente, pois já não há margem para qualquer derrapagem e mais vale prosseguir com o que está planeado.
A principal questão, por isso, é de longo prazo: como passar de 2% para 3,5% do PIB em despesa com defesa na componente tradicional até 2035 sem comprometer o financiamento das áreas essenciais como a Saúde, a Educação e as Pensões. Como se trata de uma década, a trajetória pode ser gradual, permitindo tempo para desenvolver a indústria de defesa nacional. Esta poderá responder às necessidades do Estado português e dos demais aliados, sobretudo europeus, gerando exportações, atividade económica e receita fiscal que, a prazo, compensarão o esforço público adicional.
Essa é a visão que aqui apresento de forma estruturada.
1. (Re)avaliar estrategicamente o investimento em capacidades de defesa e segurança, incluindo a Lei de Programação Militar, de forma a responder às necessidades específicas de Portugal – como a proteção do nosso vasto espaço marítimo – e aos compromissos de defesa no âmbito da NATO e União Europeia (UE), preparando o país para responder aos vários desafios. A avaliação da componente tradicional deve articular-se com a nova componente de investimentos relacionados, numa lógica de aquisição de capacidades estratégicas que valorizem, ao mesmo tempo, a indústria nacional. Tal implica privilegiar o duplo uso civil e militar dos equipamentos, o alinhamento com programas europeus de defesa (como o Readiness 2030, o fundo europeu de 150 milhões de euros, e, em geral, a Estratégia Industrial de Defesa Europeia), permitindo o acesso a tecnologia e a integração nas cadeias de valor, bem como a negociação de contrapartidas nos contratos de aquisição ao exterior. A definição das capacidades de defesa deve, assim, incorporar desde logo a perspetiva de criação de valor económico, promovendo a sustentabilidade orçamental e a preservação do Estado social.
2. Desenvolvimento da indústria nacional de defesa, com foco no duplo uso civil/militar, na tecnologia avançada e na capacidade exportadora, contribuindo para elevar o perfil de especialização da economia portuguesa, com maior intensidade em conhecimento e tecnologia. Ao investir em produtos com aplicação industrial e militar – como sensores, drones, satélites, sistemas de vigilância, cibersegurança –, impulsionamos o PIB, fomentamos emprego qualificado e fortalecemos competências nacionais. Recordo que Portugal já dispõe de alguma capacidade instalada, tanto no setor privado (exemplo: drones), como no público, através da idD - Portugal Defence, que gere participações em empresas nas áreas da defesa: marinha (Arsenal do Alfeite); tecnologias de informação (EMPORDEF); reparação naval (Navalrocha); aeronáutica (OGMA); eletrónica (EID); software (EDISOFT) e explosivos (Extra – Explosivos da Trafaria).
3. No financiamento, promover ativamente (via AICEP) a captação de investimento externo na área da defesa, complementando as medidas gerais de atração de investimento, com realce para a descida do IRC e IRS. Deve-se ainda facilitar o acesso da indústria a fundos europeus na área da defesa que venham a estar previstos, bem como avaliar a viabilidade de parcerias público-privadas nesta área, como mecanismo complementar para cumprir as metas da NATO sem envolver demasiado financiamento público e estimular, ao mesmo tempo, o setor privado e a atividade económica.
4. Apostar na formação e qualificação de recursos humanos em áreas críticas para o setor da defesa, articulando o investimento com o sistema de ensino superior e técnico-profissional, e promovendo sinergias com centros de investigação e universidades.
5. Avaliar a criação de um polo tecnológico e industrial de defesa com forte componente de inovação, promovendo sinergias entre empresas, centros de I&D, universidades e Forças Armadas, acelerando assim a especialização e a capacidade exportadora do setor.
Após a análise anterior, concluo que o reforço da despesa com defesa não tem de ser incompatível com a sustentabilidade do Estado social.
Se esse reforço for acompanhado de uma estratégia industrial orientada para o duplo uso civil-militar – com foco em I&D, qualificação e criação de valor económico –, potenciada por contrapartidas nas aquisições externas, captação de investimento externo e parcerias público-privadas, nomeadamente, o esforço poderá gerar retornos em atividade, emprego e receita, tornando-se parte da solução.
Há, aliás, bons exemplos dentro da própria NATO: vários países nórdicos, conhecidos por manterem fortes Estados sociais, já atingiam em 2024 valores de despesa com defesa acima dos 2% do PIB na componente tradicional, designadamente Finlândia, Dinamarca, Noruega e Suécia, todos acima da mediana desse ano.