Mário Tavares da Silva, Expresso online

Na necessária interdependência entre setor público e privado, em que um não vive sem o outro, radica, aliás, a base de muitos dos casos de suspeitas de fraude e corrupção a que temos assistido ao longo dos anos, envolvendo altos dirigentes e colaboradores públicos, ocupando as mais diversas posições funcionais, sobretudo no domínio dos procedimentos de contratação pública firmados com entidades privadas. Basicamente, a ideia é simples: o risco de um tem por referencial o risco do outro, e vice-versa, num complexo jogo de espelhos que nem sempre nos oferece a totalidade dos ângulos mortos

Tendemos, por regra, talvez fruto da maior mediatização a que são sujeitos, a discutir e a tomar posição sobre os desafios e as necessidades de prevenção da fraude e da corrupção no setor público e nas múltiplas entidades que o integram, esquecendo, sem que identifiquemos razões válidas para o efeito, que essas mesmas necessidades de prevenção se colocam, com igual ou maior acuidade, nas entidades que integram o setor privado.

Basta pensar, por exemplo, que o risco de fraude e de corrupção que normalmente associamos às entidades públicas nos mais variados domínios da sua atuação legal e de que se destaca, com maior visibilidade, o relativo à contratação pública, nos surgir, por regra, conexo com a atuação de entidades privadas que com elas interagem, provando a simplicidade da velha sabedoria popular de inspiração argentina que nos ensina, de forma tão clara refira-se, que “…são precisos dois para dançar o tango…”, o público e o privado entenda-se.

Como todos bem sabemos, a realidade é o que é, e o setor público não sabe viver (e não conseguiria, mesmo que o quisesse) sem o setor privado, refém que se encontra dos serviços que lhe contrata para a boa e integral execução das suas responsabilidades legais. Esta necessária interdependência, em que um não vive sem o outro, radica, aliás, na base de muitos dos casos de suspeitas de fraude e corrupção a que temos assistido ao longo dos anos, envolvendo altos dirigentes e colaboradores públicos, ocupando as mais diversas posições funcionais, sobretudo no domínio dos procedimentos de contratação pública firmados com entidades privadas.

Basicamente, a ideia é simples: o risco de um tem por referencial o risco do outro, e vice-versa, num complexo jogo de espelhos que nem sempre nos oferece a totalidade dos ângulos mortos.

Esta realidade é há muito conhecida e tratada pelas mais diversas instituições nacionais e europeias, sobretudo as ligadas às atividades de auditoria e controlo.

Por exemplo, já em 2021, num importante documento publicado pela Inspeção-geral de Finanças, Autoridade de Auditoria, sob o título Gestão dos Riscos na Contratação Pública se afirmava que a contratação pública se assume como um pilar nuclear para a gestão pública, representando uma relevante fatia da despesa das administrações públicas, em que os contratos públicos se apresentam com um peso significativo nas economias dos Estados-Membros. Nesta medida, a autoridade de auditoria nacional calculava então que o seu valor representasse mais de 16% do PIB da União Europeia, num cenário em que, como afirma, se é verdade que a elevada expressão financeira associada permite alavancar determinadas políticas públicas, a mesma se constitui, simultaneamente, como um fator de risco, atentos estudos que apontam para que as más práticas em contratação pública tenham um impacto superior a 5% da despesa subjacente.

Essa é, aliás, a razão pela qual o atual regime geral de prevenção da corrupção (RGPC) elege a contratação pública como uma das principais áreas de risco, tal como sucede, aliás, com as relativas à concessão de subsídios, subvenções ou benefícios, aos licenciamentos urbanísticos, ambientais, comerciais e industrias e aos procedimentos sancionatórios. E é também a razão pela qual o RGPC se aplica, indistintamente, a entidades públicas e a entidades privadas, impondo a ambas um conjunto não negligenciável de obrigações específicas, sempre que empreguem 50 ou mais trabalhadores, incluindo a administração direta e indireta do Estado, regiões autónomas, autarquias locais e setor público empresarial.

Numa abordagem muito pragmática, resulta então claro que o critério legal para se ser considerada entidade abrangida pelo RGPC assenta pois no número de trabalhadores da entidade e não no setor de atividade em causa ou na natureza das funções e serviços efetivamente prestadas por essas mesmas entidades. Neste enquadramento, e à luz do atual quadro legal, se a empresa cumpre os requisitos referidos deverá adotar um programa de cumprimento normativo, que deve incluir, no mínimo, um plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas (PPR), um código de conduta, um programa de formação interna, um canal de denúncias e a designação de um responsável pelo cumprimento normativo.

E isto é assim porque, como todos nós bem sabemos, as entidades privadas não estão imunes ao risco que emerge da sua própria atividade e dos parceiros contratuais públicos com que interage. Esta é, aliás, a razão pela qual tendemos a considerar que a submissão de uma entidade privada como estando abrangida pelo RGPC deveria assentar, não tanto do número de trabalhadores que emprega e que tem funcionado como critério legal para a colocar dentro ou fora do perímetro de aplicação do RGPC mas antes num critério que se fizesse ancorar numa prévia ponderação quanto à caraterização e mapeamento do risco da própria área de negócio em que essa entidade privada opera, entre outros elementos que, admitimos, possam, com vantagem para o exercício e resultados finais, ser identificados e utilizados numa melhor densificação do risco a atribuir a cada uma dessas entidades e setores de negócio.

Para nós, o critério do número de trabalhadores é, nessa exata medida, um critério redutor, pois basta pensar, por exemplo, que existem entidades privadas que dispondo de um número de trabalhadores inferior ao legalmente previsto, sejam, por essa razão, subtraídas ao perímetro de aplicação do RGPC, quando o risco da sua atividade operacional e as entidades públicas com que se relacionam, ditaria a sua submissão a esse regime legal e, paralelamente, existirem outras entidades privadas que dispondo de um número de trabalhadores que a enquadre no RGPC, apresente, ainda assim, um baixo risco, quer pela natureza da atividade operacional que desenvolve, quer pelo mais baixo risco associado às entidades públicas com as quais interage, sendo que neste caso, nada justificaria, em nosso entender, a submissão dessas mesmas entidades privadas ao RGPC.

O critério de submissão ao RGPC para efeitos de considerar determinada entidade privada como entidade abrangida poderia ser pois, em nosso entender, em primeira linha, um critério de risco que poderia assentar em múltiplas variáveis a definir, por exemplo, tendo por base a natureza da atividade operacional em causa e não, como resulta do atual quadro legal, um critério “cego” assente no número de trabalhadores, assim se dispondo de um referencial objetivo e relevante para melhor se decidir pela maior ou menor intensidade no processo de alocação de recursos (humanos e financeiros) e de controlos e, desse modo, conseguindo garantir-se uma maior eficiência e eficácia nos próprios processos decisionais bem como uma maior redução de custos administrativos que, por regra, recaem sobre estas situações, em que, refira-se, a conclusão tomada ex-ante por uma situação de risco baixo, o poderia perfeitamente dispensar.

Aqui chegados, e tomando por base um critério de risco que fosse capaz de otimizar toda a ação de controlo do Estado, direcionando-a para as entidades privadas (e também públicas) que assim o justificassem, o cumprimento das obrigações ínsitas no RGPC seria mais facilmente encarado pelas empresas como um investimento de valor e não como um custo de ineficiência, sobretudo nos processos de contratação pública, área em que a ligação entre o risco das entidades privadas assume maior relevância para a regularidade dos processos e boa gestão dos dinheiros públicos.

Numa sociedade global em que a dinâmica das oportunidades de negócio se impõe a uma velocidade nem sempre compatível com as necessidades de garantir uma regular e boa gestão dos dinheiros públicos, e tomando por base, em primeira linha, a relevância de critérios de risco que naturalmente teriam de ser densificados e legalmente regulamentados, as entidades privadas que constituem por regra os parceiros privilegiados do Estado, estariam então em melhores condições de passar a encarar o cumprimento das obrigações decorrentes do RGPC como um mecanismo eficaz de redução de riscos legais e financeiros, de reforço da sua reputação e credibilidade, de melhoria dos processos internos e da gestão de risco e de facilitação do acesso a mercados e à contratação pública, na certeza de que as empresas que cumprem o RGPC estão naturalmente melhor posicionadas para participar em concursos públicos e grandes projetos privados que exigem garantias de integridade, o que é particularmente mais crítico nos processos associados a financiamento europeu.

O cumprimento do RGPC não é apenas o cumprimento de uma obrigação legal. É, sobretudo, uma oportunidade para as empresas privadas fortalecerem a sua resiliência institucional, construírem uma cultura de confiança junto dos seus stakeholders (incluindo o setor público com quem contratam) e diferenciarem-se positivamente num mercado cada vez mais atento à ética e boa gestão e governança empresariais.

Trata-se, sem dúvida, de uma necessidade estratégica e de um investimento no futuro das entidades privadas, capaz de gerar valor, através da criação de um ecossistema de confiança, capaz de permitir a essas empresas cumprir os seus objetivos de negócio, no quadro de uma desejável previsibilidade de que à simplicidade dos procedimentos que adotam na sua normal atividade operacional se aplicarão apenas controlos lá onde os riscos efetivamente existam e o justifiquem, tornando então o Estado, como todos desejamos, parte da solução e não, como por vezes é injustamente percecionado pela comunidade, parte do problema.