Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

A história das sociedades modernas tem sido, em grande medida, marcada pela capacidade de adaptação a ciclos sucessivos de transformação tecnológica. Cada nova vaga de inovação trouxe consigo promessas de progresso, mas também desafios profundos para os sistemas educativos, para o mercado de trabalho e para a coesão social.

A atual transição digital, potenciada pelo desenvolvimento acelerado da Inteligência Artificial (IA), não foge a esta lógica. No entanto, há nesta transição um carácter disruptivo que se distingue das anteriores: a velocidade sem precedentes da mudança e a sua penetração transversal em praticamente todos os setores económicos e sociais colocam pressões inéditas sobre as instituições e os indivíduos. Portugal, com as suas especificidades estruturais, enfrenta este desafio a partir de uma posição vulnerável, mas também repleta de potencialidades.

A realidade nacional evidencia, desde logo, um paradoxo inquietante. Nas gerações mais jovens, as taxas de qualificação académica aproximam-se, em muitos indicadores, da média europeia. Em 2023, cerca de 41,5% dos jovens adultos com idades entre os 25 e os 34 anos possuíam um diploma do ensino superior, um número apenas ligeiramente inferior à média da União Europeia (UE), situada em 43,1%. Contudo, considerando a população adulta entre os 25 e os 74 anos, verifica-se que 47,9% continuam a deter apenas níveis de educação básicos ou inferiores — mais do dobro da média europeia (22,9%) e o valor mais elevado da UE. Ao mesmo tempo, muitos dos nossos jovens qualificados emigram por não encontrarem cá oportunidades de emprego com bons salários e uma carreira atrativa. Esta assimetria profunda tanto nas qualificações como no mercado de trabalho revela um tecido económico que não conseguiu acompanhar o aumento das qualificações formais, refletindo uma especialização económica ainda com pouca representatividade de setores com elevada produtividade e valor acrescentado, cuja competitividade está assente na intensidade em conhecimento e tecnologia.

Tal explica que, em 2023, a produtividade horária se tenha situado ainda num dos valores mais baixos no contexto europeu em 71,2% da média da UE. Só com o aumento da produtividade as empresas e o Estado poderão agar melhores salários e travar a emigração dos nossos jovens. Ora, é precisamente neste contexto que a transição digital, e em particular o avanço da IA, se revela simultaneamente uma oportunidade histórica e uma ameaça concreta.

Se a transformação necessária no sistema produtivo se deve refletir em indicadores económicos como a produtividade, ela começa na qualificação e adaptação dos recursos humanos às novas ferramentas, que exige também transformações a montante, no sistema educativo.

A aplicação da IA ao sistema educativo tem um potencial transformador inegável. Ferramentas de aprendizagem adaptativa, algoritmos que personalizam conteúdos pedagógicos, sistemas de avaliação automática e tutores virtuais oferecem possibilidades que, há apenas uma década,

pareceriam utópicas. A capacidade de moldar o ensino ao ritmo, competências e interesses de cada estudante promete, em teoria, democratizar o acesso ao conhecimento e reduzir desigualdades de base. Mas este potencial traz consigo riscos relevantes que devem ser minorados, tanto quanto possível. A personalização, se levada ao extremo, corre o risco de atomizar a experiência educativa, reduzindo a interação humana a um mero acessório. E é precisamente na interação entre professor e estudante que se desenvolvem competências essenciais como pensamento crítico, criatividade ou capacidade de debate — competências essas que algoritmos dificilmente replicarão.

Mais grave ainda são os desafios éticos colocados pelo uso massivo de dados e pela opacidade algorítmica. A recolha sistemática de informação sobre estudantes, a utilização de sistemas baseados em machine learning com critérios de decisão pouco transparentes para os utilizadores e a possibilidade de enviesamentos discriminatórios introduzidos no próprio desenho dos modelos exigem um escrutínio rigoroso. A ética não pode ser uma reflexão a posteriori; deve ser um princípio orientador desde o momento da conceção das soluções tecnológicas. A proteção da privacidade, a explicabilidade dos algoritmos e a prevenção ativa de vieses devem ser garantias inalienáveis num sistema educativo que se pretende inclusivo e equitativo.

Paralelamente, o impacto da IA no mercado de trabalho suscita questões ainda mais prementes. Ao contrário de revoluções tecnológicas anteriores, que substituíram maioritariamente funções físicas ou mecanizadas, a IA tem a capacidade de automatizar tarefas cognitivas, muitas delas associadas a profissões de qualificação intermédia ou mesmo elevada. Tal cenário alimenta ansiedades compreensíveis quanto à substituição de empregos e ao aumento da precariedade laboral. Contudo, a história económica ensina-nos que cada revolução tecnológica destruiu determinadas funções, mas acabou, a prazo, por criar novos empregos e melhorar as condições gerais de vida. O saldo líquido tem sido, tendencialmente, positivo.

O problema reside na transição. Se não forem tomadas medidas concertadas, é previsível que amplos segmentos da população — particularmente aqueles que já hoje apresentam baixos níveis de qualificação — sejam os mais penalizados. A urgência da requalificação profissional e da formação contínua é, por isso, incontornável, procurando que ninguém fique para trás.

Aqui, a colaboração entre os diferentes atores — universidades, empresas, Estado e sociedade civil — assume um papel determinante. É imperativo estreitar a relação entre a academia e o setor produtivo, garantindo que o conhecimento gerado nas instituições científicas não permanece circunscrito ao espaço académico, mas se traduz efetivamente em valor económico e inovação empresarial. Portugal enfrenta há décadas um desafio identificado de forma clara nos relatórios do European Innovation Scoreboard: a dificuldade em converter conhecimento e investigação em produtos com retorno económico, promovendo uma economia mais competitiva e um desenvolvimento mais sustentável. A IA pode ser um catalisador para superar este bloqueio, mas exige um ecossistema colaborativo sólido, onde os investimentos privados e públicos se complementem, e onde as políticas públicas incentivem a transferência de conhecimento de forma sistemática e não episódica.

O quadro regulatório assume aqui também um papel crucial. A recente Agenda Nacional de Inteligência Artificial (em fase de finalização, após o fecho da consulta pública no final de fevereiro), integrada na Estratégia Digital Nacional e alinhada com o AI Act europeu, define objetivos pertinentes: fomentar um ecossistema ético, competitivo, assente na excelência científica e no bem-estar social. Contudo, como tantas vezes sucede, a eficácia desta agenda dependerá menos do seu enunciado e mais da sua implementação concreta, que muitas vezes falha em Portugal. Será necessário assegurar que as linhas estratégicas não se perdem em burocracias ou ficam limitadas a intenções. Medidas efetivas de apoio à formação digital desde os primeiros ciclos de ensino, políticas fiscais e de financiamento que favoreçam a requalificação de trabalhadores, incentivos claros à colaboração academia-indústria e um enquadramento robusto de proteção de dados são algumas das exigências inadiáveis.

A ética, em particular, deve ser encarada como um eixo estruturante e não acessório. A tentação de priorizar ganhos de eficiência ou competitividade à custa de valores como privacidade, equidade ou transparência será sempre elevada, sobretudo num contexto globalizado onde a pressão para inovar é constante. Mas ignorar a dimensão ética da transição digital é, a prazo, comprometer a sustentabilidade do próprio modelo económico e social.

No fundo, o futuro da educação e do emprego em Portugal será aquilo que formos capazes de construir coletivamente. A tecnologia, por si só, não resolve problemas estruturais nem garante prosperidade. É uma ferramenta poderosa, sim, mas que requer uma governação consciente, colaborativa e ancorada em princípios claros. Perante um país que continua a lutar contra défices de produtividade, desigualdades educacionais e assimetrias sociais, a integração responsável da IA poderá ser não apenas um motor de crescimento económico, mas também uma oportunidade para redesenhar um modelo de desenvolvimento mais justo, inclusivo e resiliente.

Mas tal futuro não se desenha automaticamente. Requer escolhas. Escolhas políticas, empresariais, educativas. Requer, sobretudo, uma visão de longo prazo onde a inovação tecnológica não seja um fim em si mesma, mas um meio ao serviço do bem comum.