Mário Tavares da Silva, Expresso online
Um primeiro elemento de reflexão a registar e a evidenciar a deficiente compreensão sobre as questões da legalidade versus ética é a percentagem expressiva dos “virtuosos” (27%), que consideram que a corrupção é, acima de tudo, uma conduta eticamente censurável, indo para lá do recorte legal do próprio conceito de corrupção, o que é suscetível, em nosso entender, de introduzir sobressaltos e dificuldades na forma de percecionar o que está num plano (ético) e o que está noutro (legal), pois, como todos bem sabemos, nem tudo o que é eticamente censurável se subsumirá ao conceito legal de corrupção. Ao invés, e esta é a grande diferença de planos, atos e comportamentos de natureza corruptiva serão sempre merecedores de um juízo de censura no plano dos valores éticos e da integridade
No passado dia 16 de setembro, a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) lançou o novo Barómetro da Corrupção. Neste relevante, oportuno e meritório exercício para o reforço de uma cidadania mais informada e preparada para os múltiplos temas da atualidade, e que constitui, indubitavelmente, um verdadeiro serviço público a que há muito a FFMS nos vem habituando, procura-se desenvolver uma melhor compreensão do complexo fenómeno da corrupção e, sobretudo, dar a conhecer como é que a sociedade portuguesa vê e com ele convive diariamente.
Como ideia mais relevante a reter dos resultados alcançados, constatou-se que a maioria dos inquiridos acredita que a política corrompe, sendo igualmente interessante registar que também uma maioria considera que a integridade dos candidatos constitui um elemento essencial na ponderação realizada no momento de votar. Deste modo, e partindo de questões concretas, as respostas que foram sendo dadas pelo universo de 1101 respondentes, com base em entrevistas completas e validadas, permite, sem dúvida, um interessante conjunto de reflexões.
Como justificativa maior para o estudo realizado, é importante não esquecer que a corrupção se assume hoje como um problema de gravidade igual, senão mesmo maior, a qualquer um dos outros com que, infelizmente, nos vamos confrontando e que afetam, de forma estruturalmente dramática, as modernas sociedades democráticas europeias. Assim, nos dias de hoje, os temas relativos ao fenómeno da corrupção emergem nos fóruns nacionais e internacionais com a mesma visibilidade e força mediática que divisamos noutros domínios de preocupação que pontuam a agenda política, económica e social, tais como os relativos à poluição, à falta de habitação, à pobreza, ao crescimento da violência infantil ou, surpreendentemente, a um recrudescimento do tráfico de droga, fenómeno que se julgava aliás contido e que voltou, nos últimos anos, surpreendentemente, a encimar as preocupações das autoridades policiais e judiciárias nacionais e europeias.
Por outro lado, é igualmente de notar que na base de um preocupante desinteresse e, diria mesmo, de uma persistente ignorância sobre as temáticas relacionadas com a corrupção, radica uma inaceitável e incompreensível iliteracia ética e de integridade por parte de uma grande fatia da sociedade portuguesa, o que explica, em boa medida, a razão pela qual, enquanto comunidade, tendermos sempre a ficar satisfeitos com pouco e a não exigirmos mais prestação de contas e maior responsabilização àqueles que governam os destinos da polis.
A esta constatação acresce uma outra, ancorada num défice de capacitação e de formação da nossa administração pública, e também agora por força do Regime Geral de Prevenção da Corrupção, do nosso setor privado, em áreas ligadas à ética e à integridade, no que é agravado pelo facto de não termos ainda, nos 50 anos que já levamos de democracia, uma verdadeira política pública orientada para a prevenção da corrupção, nos mais diferentes domínios de atuação e responsabilidades do Estado, a começar pela educação e pela formação das nossas crianças e dos nossos jovens, numa ação coletivamente pensada, estruturalmente delineada e, desejavelmente, amplamente participada e executada por todos os parceiros que para a sua eficácia possam vir a ser considerados relevantes.
Tem sido assim ao longo das últimas décadas e disso tem sido dado um sinal muito claro nos múltiplos relatórios que vão sendo publicados pelas mais variadas e prestigiadas organizações, nacionais e internacionais, atestando que, apesar dos progressos realizados, Portugal ainda se encontra em “zona de perigo”, no que aos temas ligados à prevenção e combate à corrupção respeita.
Apesar, note-se, dos esforços encetados nas últimas décadas na prevenção e combate à corrupção, assistimos, sem surpresa, a uma perceção generalizada quanto à ineficácia da atuação dos governos e da justiça, o que tem contribuído para lesar a confiança nas instituições públicas e políticas e, sobretudo, na forma como a própria democracia tem funcionado, para já não falarmos dos enormes recursos financeiros desviados do todo em benefício de alguns poucos.
É este quadro cinzento e anémico que explica, a final, a criação, indesejável em nosso entender e que todos devemos procurar evitar, de um maior espaço para que lógicas extremistas e narrativas-discursivas xenófobas possam ir campeando na sociedade, com a simplicidade de um vírus letal e silencioso que vai, eficazmente, infetando e corroendo as defesas de uma hospedeira e doente democracia, que se revela incapaz de regenerar.
O estudo e conclusões trazidos pelo relatório da FFMS procurou, entre outras coisas, saber o que entendiam os inquiridos pelo conceito de corrupção, utilizando para o efeito, de forma combinada, uma dimensão deontológica, segundo a qual o comportamento ou ação tem de ser ilegal para ser considerado corrupto e, por outro, uma dimensão consequencialista, segundo a qual, se o resultado de um comportamento ou ação for benéfico para a população em geral, já não se trataria, a final, de corrupção.
Os resultados são, no mínimo, muito curiosos e merecem uma reflexão.
Dizem-nos, por um lado que, em média, os inquiridos concordam que um comportamento tem de ser ilegal para ser considerado corrupto (M=6,1, em que 0 é discorda totalmente e 10 concorda totalmente) e que, por outro lado, esses mesmos inquiridos não concordam que se o resultado de “uma ação for benéfico para a população em geral, não se estaria perante corrupção (M=4,3, na já referida escala), sendo esta diferença estatisticamente representativa. Combinando estas duas dimensões concetuais, o relatório coloca os indivíduos respondentes dentro de 4 grandes blocos.
Os “virtuosos” (a) que advogam que a corrupção é acima de tudo uma conduta antiética e que os resultados não justificam os meios; os “intransigentes” (b) que entendem que a corrupção é, por definição, uma violação legal e que, como tal, é sempre condenável, independentemente dos resultados da ação; os “pragmáticos” (c) que defendem que a corrupção não é apenas uma violação legal e que, como tal, pode ser justificável quando praticada para obter resultados positivos para a comunidade; e, finalmente, os “falsos moralistas” (d) categoria intrigante refira-se, dado que os inquiridos colocados neste bloco transmitem, num primeiro momento, uma imagem de rigor, suportados na explicitação clara e precisa da lei sobre o que se deva entender por corrupção mas, na verdade, quando confrontados com uma situação concreta, defendem que se ocorrerem efeitos positivos para a comunidade, aquilo que antes consideravam de forma segura como corrupção, o deixaria de ser.
De acordo com a distribuição da amostra realizada nestes quatro blocos ou categorias, o estudo conclui que a maioria dos inquiridos se encaixa nas categorias de “intransigentes” (34%) e “falsos moralistas” (32%), seguida dos “virtuosos” (27%) e, em menor número, dos “pragmáticos” (7%). Sobre este ponto, o estudo conclui que as pessoas não entendem a corrupção nem tão pouco conseguem traçar a dicotomia legalidade/ética versus resultados da mesma forma, facto que assume a maior relevância e que pode, no final, refletir diferentes níveis de tolerância perante o fenómeno da corrupção.
Esta deficiente compreensão por parte dos entrevistados que integraram o próprio estudo quanto ao próprio conceito de corrupção, constitui um elemento que assume a maior relevância na leitura e interpretação dos relevantes resultados a que o mesmo chegou.
Um primeiro elemento de reflexão a registar e a evidenciar a deficiente compreensão sobre as questões da legalidade versus ética é a percentagem expressiva dos “virtuosos” (27%), que consideram que a corrupção é, acima de tudo, uma conduta eticamente censurável, indo para lá do recorte legal do próprio conceito de corrupção, o que é suscetível, em nosso entender, de introduzir sobressaltos e dificuldades na forma de percecionar o que está num plano (ético) e o que está noutro (legal), pois, como todos bem sabemos, nem tudo o que é eticamente censurável se subsumirá ao conceito legal de corrupção. Ao invés, e esta é a grande diferença de planos, atos e comportamentos de natureza corruptiva serão sempre merecedores de um juízo de censura no plano dos valores éticos e da integridade.
Um segundo elemento de reflexão é o que nos é dado pela percentagem materialmente relevante dos “falsos moralistas” (32%) que, num primeiro momento, e dado o rigor que, hipocritamente refira-se, advogam na aplicação da lei, até se poderão confundir com os “intransigentes” mas apenas até ao momento seguinte, em que, confrontados com uma situação concreta da vida real, em regra emergente da comunidade onde se inserem, viram afinal o “bico ao prego”, ascendendo então à olímpica e cínica categoria dos “falsos moralistas”, no que que mais nos parecem ser, refira-se, “intransigentes arrependidos” ou “intransigentes instáveis”, dada a maior volatilidade com que oscilam na posição assumida, consoante a mesma aporte ou não um efeito positivo na respetiva comunidade.
Adicionalmente, e num terceiro elemento de reflexão, verificamos que se somarmos aos 32% de “falsos moralistas” os 7% de “pragmáticos”, rapidamente atingimos uns preocupantes (quase) 40% do universo de respondentes ao estudo que entende que a corrupção, quando traga um valor positivo para a comunidade se pode autojustificar (caso dos “pragmáticos”) ou que, no caso dos “falsos moralistas”, que se apresentam, como referido, numa fase inicial, como “intransigentes arrependidos” ou “intransigentes instáveis”, deixem de a considerar como corrupção quando a ação ou comportamento em causa encerre tal valor positivo para a comunidade.
É caso para se dizer que entre “falsos moralistas” e “pragmáticos” venha o diabo e escolha ou, se preferimos, que de “falsos moralistas” e “pragmáticos” está o inferno cheio.
Neste plano, e em jeito de síntese sobre o que há a fazer, parece-nos que uma estratégia de formação e de capacitação dirigidas, desde muito cedo, à nossa comunidade escolar, preferencialmente logo nos primeiros anos de vida escolar, e que depois se estenderia ao longo de todo o seu percurso académico, se poderia revelar, como já antes referido, um poderoso e eficaz instrumento para responder a estas constatações, sobretudo explicando conceitos e a sua exata configuração legal, fornecendo boas práticas em matéria de atuação ética e de integridade e, por essa via, educando para uma cidadania mais participada, mais ativa e mais informada, capaz de perceber que a corrupção, mesmo quando se pretenda assumir como uma eufemística “corrupção por causa nobre” ou “corrupção Robin Hood” não deixará nunca, em circunstância alguma, de ser considerada corrupção e, nessa exata medida, os seus perpetradores serem responsabilizados pelas atuações e decisões tomadas.