Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Tendo Portugal um baixo desempenho no contexto europeu em matéria de economia circular – conclusão do último relatório (nº 5/2022) da Agência Europeia do Ambiente sobre Portugal nessa área –, sobretudo ao nível da produtividade de recursos e da taxa de circularidade, considero bastante estranho que atualmente não tenhamos metas para estes indicadores cruciais de circularidade (pelo menos, atingir a média europeia) nos principais documentos orientadores de política nesta matéria tão importante para a reindustrialização e a sustentabilidade da economia e do ambiente.

Começo por lembrar que o modelo económico tradicional se baseia no princípio ‘produz, utiliza e descarta’, no qual os produtos são concebidos para um período de vida útil limitado, de modo a incitar os consumidores a comprar novos produtos (isto explica o fenómeno da ‘obsolescência programada’), o que exige vastas quantidades de materiais e energia a baixo preço (e de fácil acesso), associando o crescimento económico a um maior consumo desses materiais, daí este modelo também se designar de ‘linear’.

Pelo contrário, o modelo económico circular de produção e de consumo envolve a partilha, o aluguer, a reutilização, a reparação, a renovação e a reciclagem de materiais e produtos existentes, o que se traduz no alargamento e renovação do ciclo de vida dos produtos. Tal permite, em teoria, dissociar o crescimento económico do aumento dos recursos materiais, devido ao uso prolongado dos produtos e à redução ao mínimo dos resíduos e desperdícios nos materiais associados, seja pela reintrodução na economia via reciclagem após cada ciclo (longo) de vida do produto seja pelo aproveitamento de subprodutos logo na fase de produção (por exemplo, via simbioses industriais), o que gera mais valor e explica a designação de modelo ‘circular’. Como diria o famoso químico Lavoisier, “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, sendo este conceito adaptado à economia no modelo de circularidade.

Vejamos agora os valores atualizados, a posição e a evolução de Portugal nos indicadores referidos.

Dados recentes do Eurostat mostram que Portugal teve uma produtividade de recursos (ou materiais) – ou seja, o PIB por cada quilograma (kg) de Consumo Interno de Materiais, CIM (a quantidade total de materiais utilizada diretamente numa economia, excluindo a água e o ar) – de 1,5883 euros (€) por kg em 2023, que corresponde à 10ª pior posição na União Europeia (UE), onde a média foi de 2,7384 €/kg, uma posição que se mantém usando o PIB corrigido pela paridade de poderes de compra. Prosseguindo a análise com o indicador não corrigido, mais usado, assinalo ainda que o nosso posicionamento (18ª lugar em 27 países, ou 10º pior) é exatamente o mesmo que em 2000 (ano de início a série), isto apesar do crescimento médio anual de 4,1% do indicador de Portugal desde então ter sido um pouco superior ao da UE (3,7%). A questão é que Portugal estava atrasado à partida e, apesar da melhoria registada, como os outros países também progrediram, continuamos atrasados em termos comparativos nesta altura.

De salientar também que o indicador de produtividade de recursos teve a sua maior subida nos dois últimos anos, para o que contribuiu a forte progressão do turismo, que terá um valor acima da média, com o baixo VAB gerado a ser mais do que compensado pelo baixo CIM do setor (por ser dos serviços), em termos relativos. Assim, com o abrandamento em curso do turismo – que poderá acentuar-se após o desejável fim do conflito na Ucrânia, pois Portugal tem beneficiado da atração de turistas pela imagem de destino seguro, além de bonito –, o nosso indicador de produtividade de recursos poderá piorar.

Como tenho vindo a defender, Portugal tem já um peso excessivo do turismo (que explicou quase metade do crescimento económico em 2023, de acordo com dados do INE) e deve apostar seriamente na reindustrialização – circular, sustentável e humanizante (indústria 5.0) – e em serviços de elevado valor acrescentado para termos uma economia mais desenvolvida e menos dependente do turismo.

Uma indústria desenvolvida e (necessariamente) circular é compatível com uma elevada produtividade de recursos, ou não fosse a Holanda, um dos países da UE com um setor industrial mais forte, aquele que regista o maior valor nesse indicador (7,0561 €/kg em 2023, mais de quatro vezes o valor de Portugal), assim como na taxa de circularidade, que analiso a seguir.

A taxa de circularidade (ou taxa de uso circular dos materiais) mede a percentagem de materiais reciclados e reinseridos na economia, pelo que se espera que uma taxa de circularidade mais elevada contribua para uma maior produtividade de recursos – em 2022 encontro um coeficiente de correlação de 0,56 entre os dois indicadores na UE, traduzindo uma correlação moderada, quase forte. Em 2022, Portugal registou uma taxa de circularidade de 2,6%, que foi o 4º valor mais baixo na UE, onde a média foi de 11,5% e o valor mais alto foi o da Holanda (27,5%), como referido, sendo assim este país uma referência em termos de melhores práticas. Em termos evolutivos, a nossa taxa de circularidade subiu 0,8 pontos percentuais desde 2010 (o primeiro ano da série), tal como na UE, sendo que nesse ano estávamos também na 24ª posição, ou 4ª pior, pelo que também aqui continuamos muito atrasados em termos relativos.

O nosso principal documento orientador nesta área, o Plano de Ação para a Economia Circular 2023-2027 (PAEC) – do qual só se conhece o documento da consulta pública, que decorreu de 10-9-2023 a 24-11-23, encontrando-se a consulta “em análise” desde então – não apresenta metas para os dois indicadores cruciais de circularidade referidos, que são os mais focados no último relatório da Agência Europeia do Ambiente para destacar o baixo desempenho da economia circular em Portugal.

Mais estranho é o novo PAEC da consulta pública não confirmar ou atualizar as metas de economia circular com as quais nos comprometemos perante a Comissão Europeia na Estratégia Portugal 2030 (o documento orientador do nosso atual quadro de financiamento plurianal europeu), que passo a explicitar: o aumento da taxa de reciclagem global para 86% (60% nos resíduos urbanos), a redução de 12% da importação de recursos face a 2013 e atingir 20% da extração doméstica de materiais. De notar que a taxa de reciclagem global – indicador em que, segundo os últimos dados do Eurostat, atingimos 39% em 2020, na 19ª posição em 21 países com dados da UE, cuja média foi 58% – é superior à taxa de circularidade porque este é um conceito mais restrito e exigente, dado que a maioria dos materiais só pode ser reciclada algumas vezes sem perder qualidade, enquanto a economia circular visa manter os produtos e materiais em uso sem degradar a sua qualidade. Tendo Portugal uma meta ambiciosa para a taxa de reciclagem global (mais do que duplicar o valor de 2020 em 2030), seria importante o comprometimento com uma meta igualmente ambiciosa para a taxa de circularidade – que é um indicador muito mais importante, por visar a criação de valor económico via circularidade – e medidas consonantes para a atingir.

Quanto à produtividade de recursos, Portugal chegou a ter metas no âmbito do Compromisso para o Crescimento Verde (de abril de 2015, tendo deixado de haver atividade a partir de 2018) e que apareciam no primeiro PAEC 2017-2020, designadamente um valor de 1,17 €/kg em 2020, largamente ultrapassado (1,3075 é o valor atualmente estimado pelo Eurostat), e 1,72 €/kg em 2030, valor que já não tem ambição porque em 2023 registamos um número já pouco distante (1,5883 €/kg, como referido). No documento de consulta pública do PAEC 2023-2027, o anterior governo apenas assumiu a monitorização desse indicador, mas sem qualquer meta associada, denotando uma inaceitável falta de ambição.

Como em qualquer área, considero preferíveis metas relativas exigentes – por exemplo, entrar na metade de países da UE com melhor desempenho ou no primeiro quartil, dependendo da posição inicial –, mas nesta fase, considero mais realista ter como meta a média da UE num dado horizonte para os dois indicadores de circularidade mais importantes aqui analisados (a produtividade de recursos e a taxa de circularidade), uma vez que ainda estamos bastante atrás dos valores da UE. Como referência de melhores práticas, devemos estudar o caso da Holanda, que apresenta o melhor desempenho nesses indicadores.

Chamo ainda a atenção que o atraso na divulgação da versão final do PAEC 2023-2027 é relevante, porque se trata de um instrumento de política que serve de base a outros documentos oficiais orientadores mais gerais, como são o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC 2050) e, de forma relacionada, o Plano Nacional Energia e Clima (PNEC 2030), que se encontra em consulta pública desde 22-7-24 até ao dia 5-9-24. De facto, uma economia mais circular permite ter uma maior ambição na redução dos gases com efeito de estufa, que têm metas específicas no RNC 2050 e no PNEC 2030.

A única vantagem desse atraso é o novo governo ter a oportunidade de revelar maior ambição na versão revista do PAEC 2023-2027 (que, por sua vez, deverá ser vertida na versão final do PNEC 2030) como aqui proposto, designadamente a apresentação de metas ambiciosas – pelo menos, atingir a média da UE – para indicadores de circularidade cruciais como são a produtividade de recursos e a taxa de circularidade (que mereceram uma avaliação bastante negativa no último relatório da Agência Europeia do Ambiente), bem como medidas consoantes. É o futuro da nossa economia e do nosso ambiente que está em jogo.