Mário Tavares da Silva, Expresso online
“Já no plano da prevenção, investigação e ação penal da corrupção, inclui-seo novo Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), entidade relevante no modelo de governação e monitorização de uma adequada estratégia de prevenção da corrupção, e que segundo se alcança do Relatório começou a exercer a maioria das funções de que legalmente havia sido incumbido. É caso para se dizer que muito se espera ainda desta entidade ou, diríamos mesmo,muito mais certamente do que aquilo que até aqui foi possível alcançar”
Há sensivelmente duas semanas atrás, a Comissão Europeia publicou mais um Relatório sobre o Estado de Direito na União Europeia. Pela quinta vez, a Comissão Europeia procedeu, numa base de igualdade, a um exame sério, sistemático e objetivo, relativamente à evolução do Estado de Direito que se tem registado em todos os Estados-Membros da União, circunstância que levou mesmo a presidente Ursula von der Leyen a afirmar, sem meias palavras, que a Comissão continuará a colocar o Estado de Direito e a defesa da democracia no centro de todo o seu trabalho.
Já Didier Reynders, Comissário Europeu da Justiça desde 2019, refere, a este propósito, que após a primeira edição do Relatório em 2020, a União Europeia se encontra hoje mais bem equipada para detetar, prevenir e, sobretudo, superar os desafios emergentes com que se confronta o Estado de Direito, destacando nesse enquadramento, a importância que a existência de efetivos processos de diálogo estabelecidos entre os diversos Estados-Membros e as demais instituições com responsabilidades na matéria, poderá continuar a assumir no quadro do desejável progresso e reforço do Estado de Direito na União Europeia.
O relatório, como bem sinaliza Reynders, constitui a âncora de referência não só para espoletar debates a nível nacional como, sobretudo, para impulsionar as dinâmicas tão necessárias à concretização das agendas reformistas prosseguidas pelos diversos Estados-Membros.
É assim que se pode afirmar, sem surpresas, que face à sua primeira publicação ocorrida em 2020,o relatório da Comissão, enquanto instrumento de acompanhamento e monitorização de progresso do Estado de Direito na União Europeia, tenha efetivamente dado um relevante contributo para impulsionar um conjunto de reformas positivas, o que explica aliás, entre outras coisas, a razão para que dois terços (68%) das recomendações emitidas em 2023 tivessem sido,total ou parcialmente, cumpridas.
Apesar dessas boas notícias, o caminho é longo e sinuoso, dado que em alguns Estados-Membros se identificam ainda preocupações sistemáticas, com agravamento e deterioração da situação existente. Tudo, é certo, apesar de existir uma maior perceção dos cidadãos europeus (7 em cada 10 cidadãos) quanto ao importante papel da União Europeia no processo de reforço e defesa do Estado de Direito no seu respetivo país e de uma maior consciencialização por parte dos cidadãos europeus quanto à necessidade de se garantir o respeito escrupuloso pelos valores fundamentais da UE (9 em cada 10 cidadãos consideram relevante que seja garantido esse respeito).
No que substantivamente releva, extrai-se do Relatório que os sistemas judiciais nacionais, os quadros normativos anticorrupção, a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social e, ainda, os demais controlos e equilíbrios institucionais se constituem como os quatro pilares essenciais objeto de exame pela Comissão neste seu quinto exercício sobre o Estado de Direito na União.
Assim, ao nível das suas principais conclusões, a Comissão sinaliza a importância das reformas da justiça, que continuaram, note-se, a ocupar um lugar de destaque na agenda política ao longo do último ano, tendo muitos Estados-Membros dado seguimento às recomendações de 2023 e implementado as reformas acordadas no âmbito do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), o que constitui aliás, por si só, um sinal muito positivo e de enorme vitalidade das instituições nacionais com responsabilidades nas diferentes matérias.
No plano da justiça, o Relatório evidencia, ainda, as reformas que alguns Estados-Membros encetaram com vista a reforçar a independência do poder judicial, a melhorar a eficiência e a qualidade da justiça ou mesmo a facilitar o respetivo acesso por parte de cidadãos e empresas.
Um outro tópico relevante que o Relatório trata, prende-se com as estruturas anticorrupção e respetivos quadros normativos de funcionamento, dado que a corrupção, apesar dos múltiplos esforços, continua a ser um fenómeno de enorme gravidade e com um elevado e não negligenciável impacto sistémico na autoridade e integridade dos Estados e, sobretudo, dos seus modelos de governação, criando, como todos bem sabemos, inadmissíveis desigualdades no plano da distribuição da riqueza e permitindo que alguns subtraiam, ilegítima e impunemente, aquilo que à comunidade em geral deveria aproveitar.
Não admira, nesta medida, que 65% dos cidadãos acreditem que os casos de corrupção de alto nível não sejam suficientemente investigados e apenas 30% pensem que os esforços encetados pelos diferentes governos dos diversos Estados-Membros para combater a corrupção sejam eficazes.
Em Portugal, na área da justiça, a Comissão regista terem ocorrido alguns progressos, como, por exemplo, o de se ter procurado reforçar os recursos humanos, adequados e necessários, ao funcionamento do sistema judicial ou mesmo a transparência na distribuição dos processos, nomeadamente acompanhando a implementação das novas regras de distribuição eletrónica dos processos.
Já no plano da prevenção, investigação e ação penal da corrupção, inclui-se o novo Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), entidade relevante no modelo de governação e monitorização de uma adequada estratégia de prevenção da corrupção, e que segundo se alcança do Relatório começou a exercer a maioria das funções de que legalmente havia sido incumbido. É caso para sedizer que muito se espera ainda desta entidade ou, diríamos mesmo, muito mais certamente do que aquilo que até aqui foi possível alcançar.
No plano governamental, o executivo adotou a nova Agenda Anticorrupção, presentemente em processo de consulta pública. Destaca-se, com relevância, a nova legislação em matéria de «portas giratórias» que procede a um agravamento das penas aplicáveis. Regista-se, igualmente como positiva, a adoção de um novo Código de Conduta aplicável aos membros do Governo e aos altos funcionários, medida que é aliás reforçada pelos avanços ocorridos para garantir o acompanhamento e a verificação eficazes pela Entidade para a Transparência, das declarações de património.
Finalmente, e apesar dos esforços positivos que tem vindo a ser empreendidos pelas autoridades nacionais e dos resultados animadores até aqui alcançados, a Comissão aponta ainda a Portugal a subsistência de preocupações relativamente à transparência da tomada de decisões em matéria de adjudicação de contratos públicos, circunstância não despicienda a que o Governo e as autoridades com responsabilidades na matéria deverão continuar a prestar a melhor e mais cuidada atenção, sobretudo pelo elevado risco que se associa à contratação pública em geral e àquela que, em especial, terá de ser desenvolvida para garantir a execução integral e tempestiva dos investimentos financiados por fundos europeus.
Desses fundos europeus destaca-se, incontornavelmente, pela sua natureza, dotação materialmente relevante e complexidade de funcionamento que carateriza o próprio mecanismo de financiamento, os associados ao Plano de Recuperação e Resiliência, sobretudo se tivermos presente a necessidade de se continuar a proporcionar efetivas garantias junto da Comissão para que Portugal possa, dessa forma, manter os elevados níveis de confiança no seu sistema de controlo interno, que soube, aliás, conquistar desde muito cedo, e que, reavaliados positivamente em 2023, tem procurado e sabido manter no quadro dos sucessivos pedidos de pagamento que já submeteu à Comissão, o último dos quais no passado dia 3 de julho.
Em síntese, diríamos que falar de Estado de Direito é ter presente tudo isto.
Sem Estado de Direito, os direitos de todos e de cada um de nós ficariam completamente expostos e vulneráveis aos mais variados tipos de ataques, muitos deles perpetrados por quem tem precisamente, pasme-se, a responsabilidade de os proteger.
Como ilustrativamente refere Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para os Valores e Transparência, no que não hesitamos em acompanhar, o Estado de direito é uma espécie de cola das nossas democracias e uma efetiva salvaguarda dos nossos direitos, enquanto cidadãos europeus e, acrescentaria mesmo, enquanto cidadãos do mundo.
Sem ele, as nossas democracias e economias submergiriam num verdadeiro caos.
E, não tenhamos dúvidas, é esse o caos que nos cumpre evitar.
O Relatório sobre o Estado de Direito na União Europeia é apenas a prova viva de que apesar do muito já feito, muito ainda se encontra por fazer.