Óscar Afonso, Expresso online

Esta é a medida mais emblemática da Agenda no combate à corrupção, aproveitando uma nova diretiva europeia que teremos de transpor para ultrapassar problemas de inconstitucionalidade, que no passado frustraram várias tentativas de criminalização da detenção de património sem justificação conhecida, prescindindo da prova de um crime subjacente

No passado dia 20 de junho, o Governo apresentou uma Agenda Anticorrução com 32 medidas “que reuniram amplo consenso”, após “ouvidos todos os grupos parlamentares, bem como as entidades públicas relevantes na prevenção e combate à corrupção e organizações da sociedade civil”, conforme se pode ler no sumário executivo disponibilizado. Fica, assim, cumprido o compromisso assumido pelo Primeiro-ministro nesta matéria durante o seu discurso de tomada de posse. No sumário é ainda destacado que a Agenda foi “elaborada a partir do Programa do Governo e à luz desse diálogo”, que permitiu a inclusão de outras medidas “pertinentes e relevantes para o fim pretendido”.

As medidas apresentadas são para “iniciar de imediato, sem prejuízo de outras a desenvolver ao longo da legislatura, incluindo a preparação e aprovação de uma nova Estratégia Nacional Anticorrupção para o período 2025-2028, após devida avaliação dos resultados da Estratégia 2020-2024”. Estamos, portanto, apenas perante o início de um processo mais amplo de novas políticas neste domínio.

Abaixo destaco, dentro de duas perspetivas diferentes, várias medidas que ficaram fora da Agenda e poderão também gerar consenso, devendo ser (re)analisadas para inclusão em novas rondas de discussão.

1. Tendo em conta os principais aspetos de contacto em matéria de prevenção e combate à corrupção entre o programa eleitoral da AD (incorporado no programa de governo) e os dos outros partidos com maior expressão — baseando-me numa análise em coautoria publicada recentemente —, começo por destacar as principais medidas consensuais incluídas na Agenda e várias que ficaram de fora.

1.1. PREVENÇÃO DA CORRUPÇÃO

Neste âmbito, relevo a inclusão na Agenda das seguintes medidas relativamente consensuais:

(1) Regulamentar a atividade de representação de interesses legítimos (“lóbi”)

Em abril, tinha assinalado haver um consenso alargado entre os programas eleitorais no registo e regulação do lobbying – sendo a exceção a CDU, que pretende ilegalizar a prática. A Agenda contempla um Registo de Transparência, com um Código de Conduta associado, e uma Agenda Pública.

(2) Registar a “pegada” legislativa

Trata-se do registo das interações com entidades externas e das consultas realizadas ao longo do processo legislativo. Neste caso, a convergência ter-se-á feito sobretudo à esquerda, pois além da AD, apenas o PS, o Livre e PAN fizeram referência a esta matéria nos respetivos programas eleitorais.

(3) Apostar na educação como forma de prevenção da corrupção e da criação de uma cultura de integridade

A proposta abrange os vários ciclos do ensino básico e secundário (conteúdos curriculares sobre ética e literacia financeira) – aqui a convergência terá sido sobretudo com o Chega, que também apresentou medidas neste sentido no seu programa eleitoral – e a divulgação de informação pública sobre o fenómeno da corrupção e a atividade de prevenção e combate.

(4) Assegurar a contínua formação dos agentes públicos para a integridade e prevenção da corrupção

A medida segue o Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC), mas assinala-se que a promoção da transparência, formação e ética de conduta na Administração Pública (AP) foi referida, de uma forma ou de outra, nos vários programas eleitorais.

Quanto à exclusão na Agenda de medidas dos programas eleitorais que poderiam gerar consenso, realço:

(1) "Scoring de Ética e Integridade" (SEI) para as entidades públicas

É uma medida do programa da AD que destaquei em abril como inovadora, tendo sido originalmente proposta pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), do qual sou sócio fundador. Embora mais nenhum partido tenha referido esta medida, dado o consenso partidário referido sobre transparência, formação e ética de conduta na AP, lamento que não tenha sido incluída.

(2) Alargamento dos ‘períodos de nojo’ para travão às ‘portas giratórias’, no âmbito do controlo de conflitos de interesse de titulares de cargos públicos nessas matérias conexas

Esta importante medida, mencionada em vários programas eleitorais, deve ser discutida e implementada. Embora a sua formulação exija mais tempo de debate, teria sido benéfico incluir uma referência genérica na Agenda.

1.2. COMBATE E PENALIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO

Medidas incluídas:

(1) Aprofundar o mecanismo de perda alargada de bens (na ótica de perda das vantagens do crime)

Esta é a medida mais emblemática da Agenda no combate à corrupção, aproveitando uma nova diretiva europeia que teremos de transpor para ultrapassar problemas de inconstitucionalidade, que no passado frustraram várias tentativas de criminalização da detenção de património sem justificação conhecida, prescindindo da prova de um crime subjacente. A convergência desta medida ocorre com o programa do Chega, mas faço notar que é uma alternativa, no programa da AD, à medida conexa do alargamento da criminalização do enriquecimento ilícito, referida na maioria dos programas eleitorais, exceto no do PS.

(2) Alargar a proteção de denunciantes e estender a premiação de denunciantes (após avaliação)

Estas medidas geram algum consenso, pois integram os programas eleitorais da AD, Chega, PAN e Livre, embora não o do PS, enquanto a CDU defende o contrário (acabar com o regime atual nessa área).

1.3. CELERIDADE PROCESSUAL

As medidas neste âmbito, embora importantes, devem ser analisadas com vantagem, a meu ver, no âmbito da reforma da Justiça, por serem transversais. Realço apenas a inclusão na Agenda da publicação online de todas as decisões judiciais (referida por AD e Chega), por ser uma medida importante de transparência.

2. Neste segundo ponto assinalo, de entre um conjunto alargado de propostas de prevenção e combate à corrupção do OBEGEF – várias incorporadas no programa eleitoral da AD (pois eram propostas públicas) e, sobretudo, na Agenda Anticorrupção (dado que o OBEGEF foi auscultado), o que considero positivo –, apenas algumas medidas que ficaram fora da Agenda, mas poderão gerar consenso e serem consideradas:

(1) Reforçar a articulação entre o setor público e sector privado no combate à corrupção;

(2) Uso alargado da tecnologia para ampliar a transparência e reduzir a burocracia;

(3) Reforçar a cooperação internacional no combate à corrupção;

(4) Quanto à educação cívica e integridade, promovê-la também nas universidades, além do ensino primário e secundário;

(5) Impossibilitar a candidatura a qualquer cargo político eletivo de cidadãos condenados (com decisão transitada em julgado) por crimes no exercício de funções públicas, medida mais exigente do que a mera “ampliação do período de proibição” prevista na Agenda;

(6) Maior e mais efetiva transparência no financiamento dos partidos e na prestação de contas – contas e lista de financiadores dos partidos disponíveis nos seus sites, na lógica de maior transparência;

(7) Instituir o SEI também para entidades privadas (ficou fora do programa da AD e da Agenda);

(8) Instituir, em paralelo com o Relatório de Atividades, o Relatório de ética e Integridade, contendo um balanço da performance da entidade no domínio do cumprimento das obrigações previstas no RGPC.

Este artigo visa assim contribuir, não exaustivamente, para uma segunda leva de medidas anticorrupção.