Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
Desde o final do ano passado levantei várias questões sobre a evolução das contas públicas em 2023 e, finalmente, em maio, tivemos algumas respostas a respeito da queda da dívida pública, pelo que deixo um balanço do que ficou apurado, com análise adicional minha, e algumas questões que ficaram por fazer.
Da audição do anterior Ministro das Finanças, Fernando Medina, perante a Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública do Parlamento, retive os seguintes pontos e dúvidas por esclarecer.
- Confirmamos que uma parte relevante da redução do valor absoluto da dívida pública em 2023 (cerca de 9,3 mil milhões de euros, m.m.e., de 272,4 m.m.e. no final de 2022 para 263,1 m.m.e. no final de 2023) na ótica que interessa para efeito dos compromissos europeus (ótica de Maastricht) terá resultado de um efeito de consolidação, ao ser excluída, nessa ótica, a dívida detida por entidades das Administrações Públicas. Ou seja, uma parte significativa da queda terá sido explicada pelo aumento da dívida dos subsetores das Administrações Públicas em 2023 detida por outros subsetores, como já tinha sido apontado numa análise da Unidade Técnica de Apoio Orçamental do Parlamento (UTAO). Quando questionado sobre se houve “pressão” política para a compra de dívida titulada por entidades públicas, Fernando Medina explicou que "a aplicação progressivamente maior da utilização em títulos de dívida pública portuguesa por parte de entidades de natureza pública" estava "prevista no plano de atividade da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP)" porque esses fundos estavam disponíveis dento do Estado e podiam ser utilizados para esse fim", algo que já vinha "sendo feito antes".
- Contudo, uma operação específica já antes prevista terá tido também relevância. Fernando Medina explicitou que a transferência em 2023 de 3 m.m.e. (1,1% do PIB) de ativos do fundo de pensões da CGD para a Caixa Geral de Aposentações – onde todos os fundos estão aplicados em divida portuguesa, segundo Medina – fez baixar a divida pública na ótica de Maastricht nesse montante (por esse valor ser excluído do cálculo ao passar a ser detido pelas Administrações públicas, como referido). Faço notar que essa operação não interferiu no cálculo do saldo orçamental, apenas na divida pública.
- O peso de divida pública portuguesa na carteira do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) passou de 54% no final de 2022 para 54,55% no final de 2023, pelo que "no final de 2023 não detinha nenhuma percentagem adicional maior (…) do que detinha no final de 2022", argumentou Medina, para mais tarde reconhecer que tal resulta num aumento absoluto da aplicação do FEFSS em dívida pública, porque as leis "aprovadas" pela Assembleia da República (…) alocam ao FEFSS os excedentes orçamentais do sistema previdencial", que têm sido "crescentemente elevados" nos últimos anos, tendo ascendido a 4,6 m.m.e. em 2023.
Usando estes dados fornecidos, como o FEFSS tinha uma carteira de 23,1 m.m.e. em 2022 (os últimos dados disponíveis, não sendo públicos os de 2023), os 54% de dívida pública no final desse ano ascendiam a 12,5 m.m.e.. Em 2023, com mais 4,6 m.m.e., a carteira terá subido para 27,7 m.m.e. no final do ano (se não tiver havido mais dotações), pelo que os 54,55% de dívida pública traduzirão 15,1 m.m.e., levando a um reforço de 2,6 m.m.e de dívida pública detida pelo FEFSS em 2023, que baixa nesse montante a dívida pública na ótica de Maastrich após consolidação. Assim, não se pode dizer que o dinheiro das pensões foi usado para baixar artificialmente o rácio da dívida, pois foram as regras existentes (o peso mínimo de dívida pública no FEFSS é de 50%) e as opções de gestão do FEFS (que não baixou esse peso) que o ditaram.
- Pelas minhas contas, usando dados do Banco de Portugal, da redução de 9,3 m.m.e. da divida pública na ótica de Maastricht em 2023:
- cerca de 5,0 m.m.e. deveu-se à queda da dívida consolidada apenas dentro dos subsetores – da qual 3,0 m.m.e. associada à operaçãoreferida do fundo de pensões da CGD, justificando grande parte do recuo da dívida da Administração Central (de 284,3 para 279,1 m.m.e.);
- e 4,3 m.m.e. traduziu um efeito de consolidação entre subsetores,repartido entre os 2,6 m.m.e. de efeito das compras doFEFSS e os restantes 1,7 m.m.e. associados, em geral, à “maior da utilização em títulos de dívida pública portuguesa por parte de entidades de natureza pública (…) porque esses fundos estavam disponíveis dento do Estado e podiam ser utilizados para esse fim", nas palavras de Medina.
Entre os fundos disponíveis, destaco depósitos pré-existentes nas Administrações Públicas e excedentes orçamentais gerados em entidades públicas durante o ano. A distribuição de dividendos extraordinários de algumas empresas públicas (Águas de Portugal, Nav e Casa da Moeda), na ordem de 130 milhões de euros, terá tido assim um peso reduzido na redução da dívida pública em 2023, como sustenta Medina, que recusou ter havido pressão política para tal, salientando que os pedidos apenas foram feitos após uma análise de que a situação financeira das empresas o permitia.
Apesar da queda da dívida pública na ótica Maastrich em 2023, a dívida direta do subsetor Estado, antes de consolidação, subiu 8,9 m.m.e. (para 296,0 m.m.e.), com origem nos certificados de aforro.
- O excedente orçamental de 1,2% do PIB em 2023, equivalente a 3,2 m.m.e, teve origem no saldo positivo de 5,7 m.m.e. da Segurança Social, do qual 4,6 m.m.e. foi usado para aplicação no FEFSS por imposição legal, como referiu Medina, sobrando por isso 1,1 m.m.ede saldo (0,4% do PIB) que, pela Lei de Enquadramento Orçamental (artigo 21º), LEO, deveria ser alocado à amortizaçãoda dívida pública, por estar ainda acima do referencial europeu de 60% do PIB. Conclui-se, neste caso, que todo o excedente orçamental de 2023 terá contribuído para a redução da dívida, quer pela alocação da maior parte ao FEFSS quer pela amortização da dívida no remanescente, se tiver sido cumprida a LEO.
- O ponto anterior suscita a óbvia questão, não colocada pelos elementos da Comissão Parlamentar (que eu saiba), sobre o que aconteceu ao “fundo para investimento estruturante pós-2026” que Medina inscreveu no Relatório da Proposta de Orçamento de 2024 (antes de se saber que iria haver eleições antecipadas), “arrancando em 2023 com 2000 milhões de euros” correspondentes ao excedente orçamental de 0,8% do PIB previsto na altura (outubro de 2023), que seria mais tarde revisto para 1,2%.
A Professora Nazaré Costa Cabral, Presidente do Conselho Superior do Conselho de Finanças Públicas (CFP), manifestou-se logo totalmente contrária à criação desse fundo, que se afigura ilegal à luz da LEO. Como Medina disse na Comissão Parlamentar que, por lei, a maior parte do excedente da Segurança Social em 2023 seria para provisionar o FEFSS (faço notar que, pelas regras, tal só não seria necessário se o FEFSS já cobrisse 2 anos de pensões, o que ainda não acontece), questiono se em outubro de 2023 desconhecia as regras ao propor o referido “fundo para investimento estruturante pós-2026”, usando todo o excedente orçamental apurado em 2023, assim como os previstos nos anos seguintes.
- Finalmente, estranho ainda como é que na Comissão Parlamentar ninguém aproveitou a oportunidade para perguntar a Medina porque é que, em setembro de 2023, foi enviada pelo INE ao Eurostat, no âmbito do reporte de Procedimento de Défices Excessivos (tendo como fonte o Ministério das Finanças), a projeção de um défice orçamental de 0,4% em 2023 (tal como no Programa de Estabilidadede abril desse ano), quando, na mesma altura, o CFP previa um excedente orçamental de 0,9% para o ano com base nas estimativas de execução orçamental do próprio Ministério das Finanças. Passado menos de um mês, no Relatório da Proposta de Orçamento de Estado de 2024, aprevisão do Ministério das Finanças passou para um excedente de 0,8% do PIB em 2023 (mais tarde revisto em alta para 1,2%, como dito acima), quase em linha com a do CFP. A transparência e reporte das contas públicas não são coisa de somenos, pelo que o escrutínio deveria também ser forte a esse nível. Como disse anteriormente neste e noutros espaços de opinião, “esconder” o excedente orçamental parece ter sido uma opção política devido à insatisfação da ala mais à esquerda no interior do PS e para adiar as acusações dos partidos à esquerda do PS, anteriores parceiros de ‘geringonça’, mas isso é algo que certamente Medina não quererá admitir.
- Além do que se conhece da evolução da dívida pública em valor absoluto, que procurei sintetizar acima, o CFP confirmou, entretanto, que a conjuntura económica explicou grande parte da redução de 13,3 pontos percentuais(p.p.) do rácio da dívida pública no PIB em 2023 (de 112,4% para 99,1%, número que Medina considera possa vir a ser revisto em baixa). De facto, segundo o CFP, “o efeito dinâmico (-7,6 p.p. do PIB) [evolução real e nominal do PIB], influenciado sobretudo pelo efeito dos preços devido à inflação, explicou mais de metade da redução do rácio da dívida, acompanhado em menor escala pelo efeito favorável do saldo primário (-3,4 p.p.) e pelo ajustamento défice-dívida (-2,3 p.p.).”
A principal conclusão da análise anterior é de que, muito provavelmente, não terão sido cometidas ilegalidades por Medina nas contas de 2023, mas uma chegou a estar prevista (o tal “fundo para investimento estruturante”) e houve decisões, no mínimo, politicamente questionáveis, pois os fins não devem justificar todos os meios. Só o Tribunal de Contas poderia fazer uma análise cabal de algumas questões levantadas pelo novo governo em relação a decisões do anterior Ministro das Finanças (em 2023, mas sobretudo no primeiro trimestre de 2024, antes de sair), a meu ver, mas creio que tal não seria útil, pois é tempo de procurar diálogo e alcançar consensos no Parlamento, a bem da governabilidade.
De qualquer modo, se a redução da dívida não foi feita “artificialmente”, como considerou a UTAO (justificando com dados objetivos, mas indiretos) e Medina rejeita, o anterior Ministro das Finanças assume que foi uma opção política baixar o rácio de dívida pública para um valor abaixo de 100% do PIB (99,1%), uma meta que sempre considerei artificial, porque não nos fez ficar abaixo de nenhum país europeu (o mais próximo, o Chipre, tem um rácio muito menor, próximo de 80%) e o povo ficou pior, além de que a mera evolução da conjuntura já permitia uma substancial queda do rácio da dívida.
De facto, um excedente um pouco menor (e uma dívida um pouco maior) poderia ter aliviado o sofrimento das famílias numa altura de emergência social (face ao impacto acumulado da inflação e da subida das taxas de juro), nomeadamente se o anterior governo tivesse aceite a proposta do PSD de desagravar o IRS em 1,2m.m.e. ainda em 2023, optando antes por copiar a magnitude da proposta do PSD – bem acima dos 400 milhões de euros que tinha inscrito no Programa de Estabilidade de abril –, para não ficar atrás, e colocá-la no Orçamento do Estado 2024 (ano de eleições europeias), prolongando assim vários meses o sofrimento das famílias desnecessariamente.
Parte do excedente orçamental de 2023 poderia também ter sido usado, por exemplo, para fazer a reposição integral do tempo de serviço dos professores e parar as greves prolongadas e legítimas nesse setor – penalizando os alunos e os respetivos pais –, algo que o novo Governo da AD conseguiu fazer em apenas um mês, negociando essa reposição de forma faseada (com prometido em campanha eleitoral) a custar40 milhões de euros no primeiro ano e, no máximo, 300 milhões de euros por ano a partir de 2027.
Em suma, o brilharete orçamental de Medina teve muito de conjuntural e o resto de mérito próprio na prossecução de um objetivo para o rácio de dívida pública, mas que, como referi, foi artificialmente baixo e serviu mais uma lógica de marketing político pessoal do que o real interesse da população, que poderia ter beneficiado da aplicação de parte do excedente orçamental para a resolução dos seus problemas.