José António Moreira, Jornal i online
As empresas usam de criatividade para encontrar brechas na letra da lei que possam favorecer o seu interesse
No contexto das regras legais existentes, o interesse das empresas em minimizar o pagamento de impostos é legítimo, tal como é o do Estado ao querer maximizar a arrecadação dos mesmos. Na generalidade dos casos, a compatibilização destes interesses antagónicos verifica um processo relativamente padronizado de atuação das duas partes: as empresas usam de criatividade para encontrar brechas na letra da lei que possam favorecer o seu interesse; o Estado, por seu lado, lupa numa mão e caneta na outra, procura detetar brechas por onde possa esvair-se o tributo fiscal e, descobertas, escreve correções e adendas às leis respetivas.
Se ambas as partes fossem eficientes nos respetivos desideratos, provavelmente o efeito global da criatividade empresarial, por confronto com a precisão legislativa do Estado, daria soma nula. Porém, nem sempre se consegue essa plena eficiência. Umas vezes porque as atuações das partes não são contemporâneas, levando a que entre o momento em que a brecha é descoberta e utilizada e um momento, futuro, em que é colmatada, as empresas obtém algum benefício para os seus interesses; outras, porque tendo o Estado dificuldade em atuar, milimetricamente, sobre as muitas pequenas brechas com que se depara, opta pelo lançamento de um “camião de concreto” sobre a área, alternativamente a tapar cirurgicamente cada uma delas, obliterando as existentes e esterilizando o terreno onde poderiam vir a surgir outras, com isto obtendo benefícios.
Veja-se o caso das viaturas ligeiras das empresas. No princípio, estas descobriram que podiam aumentar a remuneração dos seus quadros sem com isso incorrerem em encargos fiscais adicionais, bastando atribuir-lhes viatura da empresa para utilização pessoal. Os gastos respetivos apareceriam nas contas desta e seriam considerados para efeitos da redução dos lucros e dos correspondentes impostos. Dessa descoberta beneficiaram até ao momento em que o Estado decidiu colmatar a brecha legal, impondo que nos casos em que existisse a atribuição de uma viatura o valor dessa benesse deveria ser considerado como retribuição e, nesse contexto, ser tributada em IRS no âmbito do rendimento do funcionário.
Porém, como nem sempre era possível ao Estado provar que a viatura atribuída a um funcionário não consubstanciava um instrumento de trabalho – pense-se no caso de um funcionário da área comercial, que passa o seu tempo de trabalho a viajar entre clientes –, aquele decide adotar a estratégia do “camião de concreto”, soterrando todas as brechas fiscais no domínio da atribuição de viaturas: impôs as denominadas “tributações autónomas”, que privilegiaram o interesse do Estado e geraram receita fiscal bem em excesso àquela que seria devida se as empresas declarassem adequada e precisamente a atribuição de viaturas ao pessoal.
Excetuando um conjunto de isenções muito restritas, onde se incluem o caso das viaturas em que exista um contrato escrito entre o trabalhador que usufrui da viatura e a empresa, os gastos com este tipo de ativos não são considerados como gastos fiscais – isto é, não são deduzidos ao rendimento para efeitos de cálculo do lucro – e, ainda por cima, são tributados com taxas significativas, dando origem à referida tributação autónoma. Por exemplo, para uma viatura movida a gasolina ou gasóleo, com custo de aquisição superior a 32.500 euros, todos os gastos a ela atinentes, incluindo combustíveis, são tributados à taxa de 32,5% (ou 42,5% se no ano em causa a empresa tiver apresentado prejuízo).
O argumento oficial justificativo deste tipo de tributação, que não depende do rendimento das empresas (por isso dito “autónomo”), é sustentado no desincentivo que ele constitui à concretização de investimento e gastos não imprescindíveis à atividade empresarial, evitando a correspondente evasão fiscal. Se por trás deste piedoso argumento não existisse o objetivo de criar mais uma fonte de receita, outras poderiam, possivelmente, ser as soluções adotadas para constranger atitudes empresariais ditas despesistas.
Foi o que fez a Coreia do Sul, conforme recentemente noticiou o Financial Times. Também neste país, o respetivo governo considerou que as empresas faziam gastos exagerados com viaturas de luxo, com isso reduzindo o pagamento de impostos. Cerca de 70% de todas as viaturas de luxo vendidas no país – como Bentley, Lamborghini e Rolls-Royce – eram adquiridas por empresas. Consultados pelo ministro da tutela os “cidadãos, peritos e setores empresariais”, a solução recaiu na imposição de chapas de matrícula diferentes, de cor verde refletora, para viaturas pertences a empresas e cujo preço de aquisição seja superior a cerca de 50.000 euros. O efeito imediato foi uma quebra drástica nas vendas deste tipo de viaturas.
Solução criativa, sem dúvida. Tem subjacente um contexto legal e social que tende a não corresponder ao português. Por um lado, que se saiba, não houve constrangimento legal que classificasse essa solução como discriminatória. Há já bastantes anos, em Portugal adotou-se medida semelhante para desincentivar a importação de carros usados – impondo que as respetivas matrículas começassem por K –, que prontamente teve de ser abandonada por ser considerada como discriminatória. Por outro lado, as autoridades coreanas contam com o efeito da reprovação social para desincentivar quem, em ambientes ou períodos não consentâneos com a normal atividade empresarial – resorts, campos de golf, viagens em fim de semana, etc. – utiliza uma viatura empresarial. Em Portugal, a adotar-se idêntica medida, provavelmente não existiria qualquer tipo de reprovação social, antes veneração à esperteza de cidadãos que conseguem usufruir de benesses a expensas do Estado.