Mário Tavares da Silva, Expresso online

Basicamente, considera a OCDE que os completos e concetualmente bem elaborados quadros de integridade e ética ficam, depois, como que “reféns” de medidas para a sua concreta operacionalização, que tardam, em muitos casos, a ser efetivamente implementadas ou que, mesmo quando implementadas, não se mostram as mais adequadas no quadro da prossecução das desejadas finalidades. É, se quisermos, em linguagem automobilística, o mesmo que termos um belo Ferrari parqueado na garagem, ao qual, infelizmente, não podemos dar o tão desejado uso porque, pasme-se, pura e simplesmente, o mesmo não tem motor

Uma das preocupações que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) tem procurado evidenciar nos seus múltiplos fóruns sobre o estado da integridade e do combate à corrupção, aponta, precisamente, para a necessidade de ser criado um quadro anticorrupção e de integridade o mais global e abrangente possível, desafio que naturalmente tem impelido os países da OCDE, e bem, para a necessidade de reforçarem e melhorarem, continuamente, os seus próprios sistemas e quadros de atuação nesse domínio. 

Neste enquadramento, o “Anti-Corruption and Integrity Outlook 2024”, produzido e recentemente publicado pela OCDE no final do passado mês de março, é o primeiro documento de uma nova série de relatórios bienais que irão dedicar-se, em particular, ao acompanhamento e à monitorizarão da implementação e desempenho das estratégias de integridade dos países da OCDE, tendo por finalidade, entre outras, a de proceder a uma cuidada análise dos respetivos riscos de integridade que aí venham a ser identificados.

É, nesta exata medida, um relatório da maior relevância e ao qual todos, sem exceção, devemos conferir a máxima prioridade no curto prazo, quer na sua leitura e reflexão conjuntas, quer na subsequente estratégia e abordagem a adotar, com o objetivo último de encontrar as melhores soluções para as diferentes preocupações que o mesmo evidencia.

Um dos pontos críticos identificados nesse relatório é o de que a uma maior abrangência e sofisticação dos quadros de integridade pelos países da OCDE não corresponde, como aliás seria expetável e desejável, uma eficaz e integral implementação dos respetivos elementos para a sua plena concretização.

Basicamente, considera a OCDE que os completos e concetualmente bem elaborados quadros de integridade e ética ficam, depois, como que “reféns” de medidas para a sua concreta operacionalização, que tardam, em muitos casos, a ser efetivamente implementadas ou que, mesmo quando implementadas, não se mostram as mais adequadas no quadro da prossecução das desejadas finalidades.

É, se quisermos, em linguagem automobilística, o mesmo que termos um belo Ferrari parqueado na garagem, ao qual, infelizmente, não podemos dar o tão desejado uso porque, pasme-se, pura e simplesmente, o mesmo não tem motor.

E a situação é tanto mais preocupante porquanto a adoção de abordagens estratégicas na luta contra a corrupção e na construção de quadros efetivos de integridade e ética não ter, depois, a correspetiva e necessária execução das medidas planeadas, facto aliás traduzido na visível e preocupante taxa de implementação dessas medidas (67%), e que evidencia, a final, sem margem para quaisquer dúvidas, que, ao fim e ao resto, uma significativa parte (1/3) das medidas programadas, não é executada.

Acrescem outros aspetos que este primeiro Outlook sinaliza como críticos, tais como, por exemplo, o reduzido número de países da OCDE que executa, de forma sistemática, as necessárias avaliações de risco, ou ainda a reduzida implementação (40%) de práticas relativas à mitigação do risco de conflito de interesses, apesar note-se, das regulamentações formalmente densas e rigorosas que os diferentes países da OCDE apresentam.

Destaca-se, ainda, a reduzida aplicação dos quadros sancionatórios em situações de incumprimento, as baixas taxas de implementação (44%) de medidas inseridas nas áreas-chave dos quadros anticorrupção e de integridade, o que naturalmente traduz uma efetiva incapacidade dos países para levarem a cabo uma eficaz execução das suas estratégias de mitigação de riscos de corrupção e de infrações conexas.

Também se mostra preocupante a ausência de processos sistemáticos de recolha de dados relativos ao âmbito das auditorias financeiras ou orçamentais e, ainda, não menos importante, a falta de dados, confiáveis e seguros, suscetíveis de permitir aos diferentes países saber, a qualquer momento, se as pertinentes recomendações formuladas pelos auditores internos estão a ser, ou não, efetivamente objeto de um adequado, rigoroso e eficaz processo de seguimento.

Outro dos pontos identificados com red flag pela OCDE é a ausência de um efetivo acompanhamento e rastreabilidade das atividades pós-emprego por parte de titulares de cargos públicos, o que naturalmente condiciona e dificulta o cumprimento rigoroso dos períodos de reflexão que devem ser escrupulosamente observados por esses mesmos agentes no quadro da desejável e necessária mitigação de riscos associados às designadas portas giratórias (revolving door).

É, aliás, neste quadro, e tendo por base todos estes pontos críticos, que a OCDE não hesita em considerar que um dos principais problemas que enfrentam os diferentes países, incluindo Portugal, ter precisamente a ver com uma incapacidade crónica e sistémica (e incompreensível acrescentamos nós) de proceder, de forma permanente e regular, a uma recolha estruturada de dados que habilitem, em geral, os decisores políticos desses mesmos países a implementar e a desenvolver processos de monitorização rigorosos e eficazes quanto às diferentes políticas e processos instituídos e, por inerência, a perceber dessa forma qual seja então o verdadeiro impacto que essas políticas e processos podem assumir no quadro mais global dos riscos associados a eventuais práticas de corrupção e de quebras de integridade.

Falamos, a este propósito, de uns impressionantes e preocupantes 60% de países no quadro da OCDE que, numa palavra, não desenvolvem quaisquer processos de monitorização sobre o nível e qualidade da implementação das suas estratégias anticorrupção e de integridade.

É obra!

Aqui chegados, e identificados que estão os problemas, o que importa então fazer?

Em primeiro lugar, é crucial continuarmos a intensificar os processos de recolha de dados, de forma estruturada e por áreas-chave de atuação dos diferentes setores da governação, garantindo nesses dados, entre outros aspetos, a sua tempestividade, integridade, completude, granularidade, consistência e acurácia, pois só por essa forma, se podem criar as necessárias condições para desenvolver e suportar adequados e contínuos processos de monitorização e de avaliação dos diferentes sistemas de integridade instituídos.

Em segundo lugar, é igualmente necessário proceder ao alargamento das áreas de risco que em regra são tidas em consideração, incentivando-se diríamos mesmo, uma maior ambição na definição do âmbito de ação a prosseguir nas estratégias anticorrupção e de integridade.

Sobre este ponto, a OCDE realça, aliás, de forma clara, que uma excessiva concentração do foco dessas estratégias em áreas ditas tradicionais, como sucede, por exemplo, com a contratação pública ou ainda com a gestão de recursos humanos, conduz, inexoravelmente, à intolerável desconsideração de outros riscos emergentes, e igualmente relevantes, de corrupção e de integridade, como são, por exemplo, os que se conexionam com a transição verde ou mesmo com a transição digital, onde um maior envolvimento entre o governo e as empresas, traz consigo riscos acrescidos, a que devem os diferentes países da OCDE procurar responder com estratégias mais abrangentes e, sobretudo, de natureza mais proativa.

Em terceiro lugar, os países da OCDE devem, urgentemente, sobretudo na conceção e implementação das suas estratégias de luta contra a corrupção, passar a incorporar considerações relativas à interferência estrangeira e aos riscos associados à denominada “corrupção estratégica”, o que pode e deve ainda ser complementado, com medidas de ajustamento das políticas e práticas de lobby, de conflito de interesses e de financiamento político e partidários, induzindo maior transparência e rastreabilidade dos elevados fluxos financeiros que, por regra, acompanham esses financiamentos.

Finalmente, um último elemento a considerar na ambiciosa equação é o que se prende com a necessidade de se intensificar a utilização e aproveitamento de todo o potencial trazido pela IA (Inteligência Artificial), erigindo-a como uma ferramenta de utilização efetiva e privilegiada no combate à corrupção e contribuindo, por essa via, para uma mais eficaz proteção dos sistemas democráticos dos diferentes países.

Por terras lusas, seria importante, sobretudo num mês em que se celebram os 50 anos da revolução de abril, que este Outlook da OCDE se pudesse constituir como um estimulante ponto de partida para uma renovada e necessária abordagem na forma de olharmos o fenómeno da corrupção e, sobretudo, de melhor endereçarmos a pertinente estratégia para o seu eficaz combate.

É que o reforço dos nossos sistemas éticos e de integridade constitui, incontornavelmente, um desígnio nacional que a todos, sem exceção, deve convocar.

É caso para se dizer que nunca é tarde para todos fazermos melhor.

Façamos, pois, todos, a nossa parte e, assim, sejamos dignos de celebrar abril.