Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
Diz-se que a política é a arte do possível, pelo que me proponho aplicar esta máxima na análise das reais condições atuais para uma governação estável e bem-sucedida, tendo em conta o discurso do Presidente da República na tomada de posse do novo governo liderado pelo Primeiro-ministro Luís Montenegro, que comanda a coligação vencedora das eleições (AD-Aliança Democrática). O sucesso do País depende de uma governação reformista, mas para tal precisamos de estabilidade de políticas, que é dificultada pelo quadro parlamentar fragmentado.
Os Portugueses precisam de ter os seus problemas resolvidos, pelo que, no atual quadro parlamentar, em que o governo tem uma escassa maioria relativa, este necessitará de uma enorme capacidade de diálogo para implementar as políticas do seu programa de governo – que certamente será baseado no programa eleitoral sufragado –, procurando negociar pontos de convergência, medida a medida, com os partidos da oposição, em particular os dois mais votados, o PS e o Chega, que, por sua vez, deverão mostrar abertura e espirito construtivo nessas negociações.
A atitude mais responsável do governo e dos partidos da oposição é procurar entendimentos nas matérias em que possa haver alguma convergência, para implementarem o máximo de medidas dos respetivos programas eleitorais. Esse parece ser o ponto essencial implícito no ‘guião’ deixado pelo Presidente da República – com as nuances assinaladas mais à frente – para que tenhamos uma “reforçada aproximação às pessoas e aos seus problemas”. Veremos se esse guião vai ser seguido.
Exige-se responsabilidade a todos, para que não estejamos constantemente num jogo puramente tático e artificial de querela política e ‘passa-culpas’, que foi o péssimo sinal dado nas primeiras tentativas de eleição do novo Presidente da Assembleia da República.
A análise está estruturada em três pontos.
1. O contexto político e as possibilidades de alargamento da base de apoio do governo
Para se perceber melhor a atual situação política, começo por uma breve avaliação dos resultados das eleições legislativas antecipadas, que me parecem ter uma leitura clara, reforçada pelo relevante aumento da participação eleitoral (e consequente redução da abstenção).
(i) Os Portugueses manifestaram-se claramente insatisfeitos com os resultados dos últimos oito anos de governação socialista – onde também participaram o BE e a CDU, no âmbito de um acordo de incidência parlamentar conhecido por ‘geringonça de esquerda’ –, transformando a maioria parlamentar de esquerda numa clara maioria de direita, encabeçada pela coligação de centro-direita AD (com liderança do PSD e participação do CDS e do PPM, tal como na configuração original).
(ii) Os Portugueses mostraram também insatisfação com os resultados do sistema bipartidário que predominou nos primeiros quase 50 anos de democracia, tendo o voto de protesto sido muito significativo e tornado o partido Chega na terceira força política do atual quadro parlamentar.
De facto, embora os dois principais partidos do nosso sistema, o PSD e o PS, tenham voltado a ser os mais votados, nunca o terceiro partido com melhor resultado se aproximou tanto. Resta saber se essa será uma situação conjuntural ou estrutural, é também isso que está em jogo proximamente.
O histórico recente mostra que o BE e a CDU, que ganharam expressão enquanto partidos de protesto, perderam muita da sua base de apoio após tomarem contacto com as responsabilidades governamentais, ainda que por via de um acordo de incidência parlamentar. Findo o acordo escrito, a ‘geringonça de esquerda’ prosseguiu de forma apenas informal e o PS de António Costa conseguiu uma maioria absoluta após atribuir a esses dois partidos as culpas pelo ‘chumbo’ do Orçamento de Estado de 2022. Ou seja, BE e CDU foram ‘esvaziados’ enquanto partidos de protesto após se tornarem corresponsáveis pelos resultados da governação e ficarem associados ao chumbo do orçamento, tendo sido penalizados no jogo político tático de ‘passa-culpas’ do hábil António Costa, que conseguiu passar bem a mensagem aos eleitores nessa ocasião.
Assim, o Chega tem um dilema claro. Por um lado, como qualquer partido, deve assumir perante os seus eleitores – mais de um milhão, como gosta de frisar André Ventura, o líder do Chega – a responsabilidade de querer implementar o máximo de medidas do seu programa eleitoral. Correrá, por isso, o risco de perder base de apoio se não aceitar negociar de boa fé eventuais propostas de entendimento temático do novo governo, medida a medida, em matérias onde haja pontos de contacto com o programa da AD – essa é a única possibilidade de articulação, pois a AD foi eleita rejeitando acordos de governo e de incidência parlamentar com o Chega –, sobretudo aquelas não negociáveis com o PS. Desde logo o desagravamento fiscal em sede de IRS e IRC, que também está incluído no programa eleitoral do Chega. Só dessa forma o Chega saberá se a sua base de apoio é sustentável, com base nas propostas apresentadas, ou a sua ascensão apenas traduz votos de protesto temporários, pois influenciar a governação do País é a missão de qualquer partido no nosso sistema democrático. Se quer ser tratado como qualquer outro partido, deverá atuar como tal. O reverso da medalha é deixar de ser um partido de protesto ao assumir corresponsabilidade na governação, mesmo que, por via de acordos temáticos, podendo acontecer-lhe o mesmo que ao BE e à CDU. Mas, tal poderá ser evitado se mostrar responsabilidade e maturidade política e, nesse caso, poderia consolidar-se como um terceiro pilar sustentável no novo sistema tripartido.
Em alternativa, o Chega poderá querer manter-se um partido de protesto para continuar a crescer a sua base eleitoral, prosseguindo numa deriva tática irresponsável de acusar a AD de não querer entendimentos, de o Chega já não os querer ou voltar a querer, ou então, havendo mesmo algum entendimento, não o cumprir, como aparentemente sucedeu no episódio da primeira votação mal-sucedida para a eleição de Aguiar Branco para Presidente da Assembleia da República.
Embora André Ventura seja muito hábil politicamente em gerir uma tática ziguezagueante como essa, corre um risco sério de perder expressão junto da base de apoio que quer ver cumpridas, pelo menos, algumas das promessas eleitorais. Em algum momento, o Chega será confrontado com os riscos do referido dilema e perderá expressão eleitoral se não mostrar responsabilidade e maturidade política, que são as bases de um partido de regime sustentável, pois enquanto partido de protesto poderá ser rapidamente substituído por outro, como se viu no caso do BE e da CDU.
Por sua vez, o PS poderá ser prejudicado em termos de intenção de voto se não mostrar disponibilidade para entendimentos em matérias de convergência com a AD (nomeadamente as ‘de regime’), em particular se o Chega começar a alcançar entendimentos com o governo. A responsabilidade e maturidade política serão valorizadas, a meu ver, pelos eleitores, e tal não prejudica a defesa das propostas e conteúdos programáticos do PS que o distinguem da AD.
Do lado do governo da AD, a melhor estratégia é procurar estabelecer negociações de boa-fé com o PS e com o Chega nas matérias mais convergentes, medida a medida, para implementar também ao máximo o programa eleitoral sufragado. Se for percebido pela opinião pública que o governo não se esforçou, de boa-fé, em conduzir as referidas negociações, com qualquer dos partidos, será penalizado nas intenções de voto e numa futura eleição, caso o governo seja derrubado.
Vejamos agora, em detalhe, as referidas nuances do estreito caminho de governação dentro do ‘guião’ deixado pelo Presidente Marcelo, que se enquadram na análise anterior.
(a) O governo “conta com o apoio solidário e cooperante do Presidente da República (…), mas não conta com o apoio maioritário na Assembleia da República e tem de o construir com convergências mais prováveis em matéria de regime: política externa, de defesa, europeia, financeira de repercussões internacionais ou de compromissos eleitorais semelhantes.”
Enquanto o Chega for apenas um partido de protesto, apresentando-se como ‘fora do sistema’, o governo terá de procurar articular-se nestas matérias de regime com o PS, esta é a leitura que faço da primeira mensagem de governação do Presidente da República.
(b) “Para convergências menos prováveis, noutros domínios, o diálogo tem de ser muito mais aturado e muito mais exigente. Para decisões como reformas estruturais ou orçamentos de estado, essa exigência é ainda de mais largo fôlego.”
Neste caso, entendo que o Presidente deixa em aberto a possibilidade de entendimentos temáticos com o PS ou com o Chega para viabilizar reformas – que, creio, deverão ser definidas num horizonte alargado para haver estabilidade de politicas – ou enquadrados em orçamentos (eventualmente em sede de especialidade), sem prejuízo, naturalmente, de acordos com partidos mais pequenos, com realce para a IL, mais próxima da AD, mas com muito menor número de mandatos do que o Chega, o que o torna um ‘player’ incontornável para a governabilidade, tal como o PS.
(c) “Conta, para tudo isso, de um apoio popular, que lhe deu a vitória, mas para o qual terá de conquistar muitos mais Portugueses, ou porque próximos nas ideias, ou porque convencidos de que o trabalho que faz merece esse apoio alargado”. “A base de apoio político, tal como o tempo, dependem do alargamento da primeira e do uso do segundo, e de como atuarem aqueles que só ganham com soluções estáveis para o regime”. Marcelo aludiu ainda a dois ensinamentos de figuras históricas que poderão ajudar o novo governo no difícil percurso a trilhar: “em Democracia há sempre soluções” (Salgado Zenha); e “parte-se um problema em vários mais pequenos e resolve-se um a um sem perder a vista do todo, com paciência, sem elevar expectativas, ou criar ambições ilusórias” (Frei Manuel Bernardes, analogia a partir de “O Pão Partido em Pequeninos”). Deu ainda mais dois conselhos gerais de governação, tanto ao nível interno (“onde não temos problemas, não os devemos criar”, ao nível dos consensos existentes) como externo (“ter bom senso na Europa e no mundo, o que resolva problemas e não os agrave”).
Se a AD conseguir governar bem dentro do caminho estreito aqui traçado, do pouco tempo para ‘mostrar serviço’ (ver ponto 2 abaixo) e das limitações orçamentais (ver ponto 3), conseguindo subir nas intenções de voto, depreendo que o Presidente poderá até não dissolver a Assembleia da
República em caso de ‘chumbo’ do Orçamento de Estado de 2025, dando mais tempo à AD para mostrar a sua capacidade de governação até eventualmente conseguir uma solução mais estável em novas eleições. Nesse caso, o orçamento de 2025 será o de 2024 em duodécimos. Não é a situação ideal, gerando constrangimentos, mas já aconteceu e não é nenhum drama.
Caso nos próximos seis meses se consiga vislumbrar uma solução governativa mais estável do que a atual em função da evolução das intenções de voto, seja porque a AD conseguiu alargar muito a sua base de apoio, seja porque ela caiu e se torne percetível uma solução mais estável na oposição, poderemos ter eleições no início do próximo ano. É a minha leitura destas partes do discurso.
Se forem o PS ou o Chega a não quererem entendimentos temáticos ou a não mostrarem boa-fé nas negociações, então a AD poderá legitimamente atribuir culpas aos principais opositores pelo insucesso da governação ou mesmo uma eventual queda do governo e ‘sair por cima’. Caso o governo não se mostre eficaz no diálogo, na capacidade de construir entendimentos ou na comunicação – seja no anúncio público de negociações num dado tema, com determinada força política, seja na apresentação de um entendimento ou das razões da sua não concretização –, poderá ser penalizado nas intenções de voto, dependendo da habilidade dos oponentes.
É, por isso, que defendo que a melhor estratégia para cada força política é a mais responsável, demonstrando abertura e boa-fé para entendimentos que maximizem a implementação de medidas dos respetivos programas eleitorais e a soluções dos problemas dos Portugueses. É essa a responsabilidade de cada partido para com os respetivos eleitores.
Da parte do governo, a boa ideia oferecida por Marcelo de dividir os problemas “em vários mais pequenos” e resolver “um a um sem perder a vista do todo” é aplicável não só as matérias em que o governo pode decidir por si, mas também àquelas em que precisará de apoio parlamentar, o que, creio, significa procurar entendimentos mesmo em componentes de medidas singulares ou de pacotes mais abrangentes, de modo a maximizar as possibilidades de resolução dos problemas.
Os desafios do novo governo são muitos, urgentes e com restrições, como se mostra a seguir.
2. Muito para fazer em pouco tempo
O Presidente da República salientou ainda que o tempo disponível do novo governo para mostrar resultados “é muito longo em teoria, porque é de quatro anos. Na prática, para o que é muito urgente e para o que foi prometido em campanha, é muito curto.”
A respeito do curto prazo, o Presidente elencou os vários desafios mais urgentes decorrentes do programa eleitoral da AD nas principais áreas: Saúde (“Plano de emergência”); Educação (“pacificação”), Habitação (“maior abertura ao Privado e ao Social, atenção às classes médias e sem esquecer a habitação pública”); execução dos fundos europeus (“aceleração do PRR e crescente foco no Portugal 2030”); infraestruturas (“localização do aeroporto, solução para a TAP e aposta na ferrovia”); e combate a corrupção (“maior eficácia da Entidade de Transparência”).
Falou ainda de outros desafios, nomeadamente a “valorização do Estatuto militar” (“urgente em tempo de guerra”), o “fim da discriminação entre as várias forças de segurança” e “novos consensos sobre justiça”.
Naturalmente, outros pontos importantes do programa da AD não referidos pelo Presidente, como o desagravamento fiscal, serão discutidos mais à frente, por altura do Orçamento de Estado.
3. As possibilidades orçamentais da governação
Numa conjuntura internacional incerta, a economia poderá sofrer, essa foi outra das mensagens do presidente da República, o que poderia penalizar o ligeiro excedente orçamental previsto para 2024 (0,2% do PIB ou 664 milhões de euros, M€) e condicionar a margem de atuação do novo governo.
Ainda que o Banco de Portugal tenha elevado a sua projeção de crescimento económico em 2024 para 2% (face a 1,5% na projeção do OE 2024), o que, a concretizar-se, até poderia ampliar a capacidade de angariação de receita fiscal, esse valor afigura-se otimista em face da conjuntura externa adversa – em particular o fraco dinamismo económico dos nossos principais parceiros económicos na União Europeia, desde logo a Alemanha –, pelo que o governo não deverá contar muito com isso por uma questão de precaução, tendo em vista preservar o equilíbrio orçamental.
Por outro lado, ao contrário do que se diz, ‘os cofres não estão cheios’. Na verdade, à entrada de 2024 estão ‘menos cheios’ do que à entrada de 2023 e nos 14 anos anteriores, na medida em que os depósitos das administrações públicas diminuíram de 5,7% no final de 2022 para 4,3% do PIB no final de 2023, que é o valor mais baixo desde setembro de 2009 – recordo que chegamos a ter um máximo de 16,1% do PIB nesses depósitos no final de março de 2014, tendo funcionado como alternativa a um programa a cautelar na saída do Programa de Ajustamento Económico e Financeiros da Troika; desde então, esse valor foi sendo reduzido.
O excedente de 2023 terá sido usado, em grande medida, na amortização de dívida pública, para o anterior Ministro das Finanças Fernando Medina poder apresentar para memória futura (leia-se futuros ‘voos’ políticos’) a redução do rácio de dívida pública abaixo de 100%, uma meta artificial que apenas serve para marketing político e pessoal, pois não ultrapassamos nenhum país europeu só por baixar dessa fasquia (o país mais próximo, o Chipre, tem um rácio muito menor, próximo de 80%). Se o governo anterior tivesse seguido a proposta do PSD de desagravar em 1200 M€ em 2023, o excedente teria sido um pouco menor, assim como o rácio da dívida, mas poderíamos ter reduzido as dificuldades da população numa fase de emergência social, dada a perda de poder de compra, devido à inflação e às altas taxas de juro.
O que importa agora para a capacidade de governação e implementação de medidas do programa de governo são as condições económicas e orçamentais atuais.
Os dados da execução orçamental de 2024 da DGO (em contabilidade pública) mostram, desde já, uma forte redução do excedente orçamental nos dois primeiros meses do ano (para 785 M€, após 2341 M€ no mesmo período de 2023), o que evidencia uma redução da margem orçamental.
O governo poderá contar, no entanto, com algumas ‘folgas’ do Orçamento de Estado de 2024 herdado, com realce para a dotação provisional do Ministério das Finanças (500 M€) e a “reserva orçamental nas diversas entidades da Administração Central” (474,6 M€). Só estas duas rubricas permitem uma folga de quase 1000 M€, o que já é um valor bastante relevante para acomodar prioridades orçamentais do novo Governo face às promessas eleitorais sufragadas. Relembro, contudo, que as negociações envolvem contrapartidas, pelo que, ao valor das propostas da AD que o governo conseguir implementar, terá de somar o valor das contrapartidas.
O mais realista é o governo pensar, desde já, que algumas das medidas (e contrapartidas) terão de ser faseadas, nomeadamente os aumentos prometidos de salários ou benefícios de vários grupos.
Em resumo, num sistema tripartido, um governo com uma maioria relativa tão pequena, como tem a AD, é pressionado por dois adversários principais que competem entre si pela liderança da oposição. De facto, mesmo que o PS seja o líder natural da oposição (por ter sido o segundo partido mais votado e um dos dois partidos do regime, tendo governado nos últimos oito anos), a disputa com o Chega é acesa, como se tem visto.
A meu ver, as três principais forças políticas têm duas opções: ou jogar o jogo do ‘passa-culpas’, uma postura tática destrutiva que não resolve (só adia e, por isso mesmo, agrava) os problemas dos Portugueses, ou procuram convergências para implementar soluções, é isso que está em jogo.
Aconselho, por isso, o governo a procurar, dentro do ‘guião’ de Marcelo, ‘dançar bem o tango a três’ com os dois principais partidos da oposição (pelo menos): dois a dois à vez, dependendo da ‘música’ – se necessário alternando mesmo de ‘par’ entre trechos mais a gosto do mesmo dentro de uma mesma música –, com profissionalismo e sem azedumes.