Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Após dois anos de guerra na Ucrânia, a Comissão Europeia apresentou, no passado dia 5 de março, a primeira Estratégia Industrial de Defesa Europeia (EDIS na sigla inglesa), um novo programa para a indústria da defesa que visa reforçar a prontidão e a segurança da União Europeia (UE) em face das ameaças atuais e futuras.

Sendo um pacifista, entristece-me que no primeiro quarto de século deste terceiro milénio tenhamos, uma vez mais, uma guerra na Europa e uma ‘corrida às armas’ a nível global. Na medida em que a despesa militar tem alimentado o esforço de guerra em vários pontos do globo, não posso deixar de considerar o rearmamento um retrocesso civilizacional claro, que tem também implícita uma redução do potencial de crescimento e desenvolvimento a nível mundial.

Com efeito, uma boa parte da despesa e equipamento militar destina-se a destruir e a ser destruída quando for usada, o que implicará morte, destruição de infraestruturas (e processos económicos relacionados) e todo o sofrimento associado. A perda de potencial produtivo mundial ocorre ainda porque o rearmamento está ligado à disputa em curso pela hegemonia global entre EUA e China – da qual a guerra na Ucrânia pode ser considerada uma manifestação, como já tenho vindo a afirmar, quanto mais não seja enquanto condição necessária ou permissiva –, que se tem traduzido numa crescente fragmentação em blocos geopolíticos penalizadora do processo de globalização e dos fluxos mundiais de comércio e investimento.

Dito isto, a defesa faz parte da soberania de um país, pelo que será sempre necessária despesa pública (e privada) a este nível. Idealmente, toda a despesa militar e de defesa deveria assumir um caráter dissuasor, para que não fosse precisa a guerra nem toda a destruição e morte associadas – é essa a ideia do provérbio romano de que, ‘se queres a paz, prepara-te para a guerra’.

Acresce que a criação de riqueza, medida pelo PIB, não encerra considerações de caráter normativo ou ético, contando de igual modo no seu cálculo um mesmo número de unidades monetárias de valor acrescentado gerado pela produção de canhões ou de manteiga, para usar um exemplo conhecido em economia. Assim, embora a despesa militar possa encerrar destruição no seu uso, a sua produção gera riqueza. Por exemplo, os EUA são o principal país produtor de armamento e esse setor tem ajudado a suportar o crescimento da economia norte-americana ao longo dos anos, mas isto porque de trata de uma economia avançada com muitos outros setores sofisticados.

Também importante, a inovação no setor militar gera, não raras vezes, aplicações civis relevantes.

Assim, nem tudo é inerentemente mau no que à defesa e à despesa militar diz respeito, podendo gerar oportunidades de criação de riqueza, essa é a primeira nota que quero deixar. Naturalmente, os aspetos positivos para quem produz nessa área decorrem de haver um equilíbrio com outros setores numa situação normal. Tal não parece ser o caso da Coreia do Norte e da Rússia, que são hoje, assumidamente, duas economias de guerra (a Coreia de forma latente), pois essa orientação política de concentração maciça de recursos no setor militar significa desinvestir em setores vitais da economia, o que a prazo tem custos, mesmo que no início possa gerar crescimento económico.

Por outro lado, numa escala de tempo mais alargada, conseguimos vislumbrar ciclos de armamento e desarmamento entre as principais potências ao longo da história, pelo que estamos claramente num período de rearmamento, mas a dada altura as coisas podem mudar. Embora tal pareça agora distante, há que manter alguma esperança de que, a certa altura, a paz e o bom-senso regressão. Este é o segundo apontamento que deixo, o de que não nos devemos deixar cair no desalento.

O principal ponto de análise deste artigo diz respeito à nova estratégia industrial europeia na área da defesa e às oportunidades que dela emergem, com foco em Portugal.

Quanto à motivação da nova estratégia, os argumentos da ‘prontidão’ industrial e da dissuasão militar por parte da UE, que Portugal integra, são entendíveis em face das ameaças crescentes à segurança na Europa e do apoio em curso à Ucrânia.

Além da guerra na Ucrânia, a estratégia foi também estimulada pela possibilidade de Donald Trump ser reeleito presidente dos EUA e tornar o país menos cooperante no âmbito da NATO, assim como pela saída do Reino Unido da UE, que era um dos principais pilares nesta área.

Trata-se do reforço e articulação de todo um setor de defesa que foi secundarizado nas últimas décadas em detrimento das relações económicas com a Rússia de Putin que, pelo contrário, expandiu esse setor. Como vemos agora, foi um risco que se materializou e está a ter os seus custos.

Em termos substantivos, a estratégia apresentada inclui uma proposta legislativa e um quadro de medidas e metas para assegurar a disponibilidade e o fornecimento atempado de produtos do setor.

Para aumentar a preparação industrial da defesa europeia, os Estados-membros precisam de investir mais, melhor, em conjunto e a nível europeu, segundo a orientação geral da estratégia.

O Programa Europeu para a Indústria da Defesa é a nova iniciativa legislativa que passará de medidas de emergência de curto prazo – adotadas em 2023 e que terminarão em 2025 – para uma abordagem estrutural, de mais longo prazo, para alcançar a preparação industrial da defesa, incluindo aspetos regulamentares e financeiros, com realce para o pacote de 1,5 mil milhões de euros do orçamento da UE em 2025-2027 visando reforçar a competitividade do setor.

A ideia base é responder às lacunas de investimento no setor com instrumentos europeus e contratos públicos conjuntos, robustecendo ao mesmo tempo a capacidade industrial europeia (incluindo a aposta no fabrico e fornecimento de matérias-primas e outros componentes para meios de defesa) em função das necessidades – desde logo, no apoio à Ucrânia face à invasão russa –, uma abordagem em linha com a seguida na compra e aceleração das vacinas contra a covid-19.

Da proposta constam três grandes metas, em termos de prontidão industrial para os países e a UE:

(i) Adquirir pelo menos 40% do equipamento de defesa de forma colaborativa até 2030 (meta para os países);

(ii) Assegurar que, até 2030, o valor do comércio intra-UE no setor da defesa represente, pelo menos, 35% do valor do mercado de defesa da UE (meta para os países e a UE como um todo);

(iii) Realizar progressos para atingir, pelo menos, 50% das aquisições do orçamento de defesa dentro da UE até 2030 e 60% até 2035 (meta para os países).

Estas metas apontam para um vasto conjunto de oportunidades que se abrem para as empresas do setor de defesa europeu – privadas e públicas –, incluindo as portuguesas.

Um número crescente de países europeus está agora preparado para cumprir o objetivo da NATO de gastar 2% do PIB em política de defesa, mas há obstáculos, como a neutralidade de alguns Estados-membros da UE que não fazem parte da NATO (por exemplo, a Irlanda).

No caso de Portugal, o indicador fixou-se em 1,48% no ano de 2023 (estimativa do relatório anual de 2023 da NATO), acima dos 1,31% registados em 2014, o primeiro ano da série comparável disponibilizada pela NATO. Em face dos novos desafios e da nova estratégia europeia de defesa, Portugal terá de reforçar a sua despesa em defesa nos próximos anos para atingir a meta de 2% do PIB, que se tinha comprometido alcançar apenas em 2030 perante a NATO.

Em termos de comparativo, a estimativa de 1,48% do PIB de despesa de defesa em 2023 – rácio calculado em dólares e taxas de câmbio constantes de 2015, pelo método NATO, numa ótica de tesouraria (pagamentos efetuados) – representa o 8.º valor mais baixo entre os 30 países da NATO em 2023 e o 6.º mais baixo entre os 22 países da UE pertencentes à NATO (N.UE22 daqui em diante, incluindo a Finlândia, que entrou na NATO em 2023, e excluindo a Suécia, que só conseguiu aderir em 2024), traduzindo uma queda de oito posições, em ambos os casos, face ao observado em 2014. Trata-sede um valor bem abaixo da média de 2,64% da NATO, onde apenas quatro países registaram valores superiores a essa referência, com realce para a Polónia (3,90%), os EUA (3,49%) e a Grécia (3,01%).

Nos dados da NATO por componentes da despesa de defesa, Portugal regista o 5.º maior peso dos gastos com pessoal (53,8%) – quer entre os 30 países da organização quer na N.UE22 – e um dos mais baixos ao nível das infraestruturas (0,1%, na última posição na NATO e na N.UE22) e equipamentos (22,0%, na antepenúltima posição em ambos os casos), rubricas que deverão ganhar maior expressão para atingirmos o rácio de despesa de defesa de 2% do PIB com uma composição mais próxima dos demais países da NATO.

Por último, analiso os dados disponíveis do Eurostat em matéria de defesa, seguindo uma metodologia diferente da usada pela NATO, mas que permite extrair conclusões adicionais.

O peso da despesa com defesa de Portugal no PIB nos dados do Eurostat (na ótica da contabilidade nacional, usando a classificação funcional da despesa pública e preços a euros correntes) baixou de 1,0% em 2014 para 0,7% em 2022 (o último ano com dados), mas, nesta situação, ao contrário do peso calculado pela NATO, não é incluída a despesa com pensões dos militares, que parece ser o principal fator a explicar a diferença de valores e evolução dos rácios nas duas metodologias.

Ou seja, o esforço de Portugal com defesa excluindo militares que não estão no ativo tem vindo a reduzir-se na última década, traduzindo o 2.º pior rácio na N.UE22 e o 5.º pior na UE27, onde vários países não integravam a NATO nesse ano (Áustria, Irlanda, Chipre, Malta e a Suécia, que só entrou em 2024, como já referido), ajudando a explicar o seu baixo peso no indicador (com exceção de Chipre, cujo valor acima da média certamente se deve à relação historicamente complicada com a Turquia). Neste caso, o país da UE na NATO com maior rácio é a Grécia (2,6% do PIB), aparecendo a Polónia apenas na 8.ª posição (1,6%).

Finalmente, a classificação do Eurostat por componentes da despesa com defesa em 2022 mostra que Portugal tinha uma posição cimeira em termos de I&D na defesa, representando 1,5% da despesa total com defesa (na 5.º posição em 26 países da UE27 com dados e na 4.ª posição em 21 países com dados na N.UE22, faltando apenas informação para a Bulgária), ainda que abaixo do valor de 2,0% na UE27 (empolado pelos 4,1% na Alemanha), e 0,010% em rácio no PIB (8.ª e 7.ª posições, respetivamente), que compara com 0,025% na UE27 e 0,041% na Alemanha. No caso da defesa militar, que representa o grosso da despesa com defesa (88,6% em Portugal) estamos apenas duas posições abaixo da mediana da UE27 (16.ª posição), onde o peso foi de 89,9%.

Tendo Portugal muito a progredir no conjunto da economia em termos de I&D e em peso do VAB industrial (estamos ainda longe dos valores médios da UE em ambos os casos), é importante saber que estamos relativamente bem posicionados em matéria de I&D na indústria de defesa e se abrem perspetivas muito positivas no setor em face da nova estratégia industrial europeia de defesa, pelo que esta aposta deve ser reforçada nos próximos anos.

Quanto à caracterização do setor, e porque o artigo já vai longo, faço apenas notar que aidD - Portugal Defence é uma entidade pública que integra as participações sociais do Estado Português no setor da defesaem várias áreas centrais: Arsenal do Alfeite, S.A. (marinha); ETI (EMPORDEF – Tecnologias de Informação, S.A.); Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, S.A.; OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal; EID – Empresa de Investigação e Desenvolvimento de Eletrónica, S.A.; EDISOFT – Empresa de Serviços e Desenvolvimento de Software, S.A.; e a Extra – Explosivos da Trafaria, S.A..

Enquanto as duas primeiras empresas são detidas a 100% pelo Estado português, as demais têm participação do setor privado – abarcando muitas mais empresas deste setor, várias das quais certamente com conexões às já referidas no âmbito da designada ‘economia da defesa’ –, que também será estimulado pela nova estratégia europeia.

No meio da desgraça que é a guerra, a nova estratégia industrial de defesa europeia poderá ser aproveitada para alavancar a indústria e I&D nacionais, gerando riqueza e emprego, partindo de capacidade relevante já instalada, que terá de ser reforçada no âmbito dessa estratégia.