Daniel Espínola, Jornal i online
A ideia de que todos nós possuímos um potencial sombrio para a crueldade e a corrupção pode ser perturbadora, mas também é libertadora, pois nos isenta da ilusão reconfortante de nossa própria inocência
No cenário das discussões sobre ética, corrupção e comportamento humano, algumas ideias emergem como faróis que iluminam os caminhos obscuros da moralidade. Uma delas é a noção de "banalidade do mal", popularizada pela filósofa Hannah Arendt em sua análise sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Essa ideia desafia a noção simplista de que o mal é exclusivo de indivíduos monstruosos e sádicos, lançando luz sobre a capacidade aparentemente comum das pessoas se envolverem em atos atrozes. Não são apenas líderes autoritários ou fanáticos ideológicos que se entregam à corrupção e à crueldade – muitas vezes são funcionários comuns, vizinhos e colegas de trabalho.
Enquanto muitas vezes buscamos refúgio na percepção reconfortante de que o mal reside exclusivamente nos "outros", como retratado nos diversos filmes sobre o Holocausto, o recente "A Zona de Interesse" dirigido por Jonathan Glazer e premiado com Óscar de Melhor Filme Internacional, resgata as reflexões de Arendt nos confrontando com a verdade perturbadora de que o mal pode residir em todos nós.
O filme adentra na vida da família de Rudolf Höss, comandante do campo de concentração de Auschwitz. Enquanto à sua volta o mundo gira em torno da guerra e do genocídio, sua família reside em uma redoma de normalidade e aparente felicidade, ignorando os horrores que ocorrem a poucos metros dali.
Através de personagens complexos e situações moralmente ambíguas, o filme nos obriga a confrontar a realidade desconfortável de que o mal pode se manifestar de maneiras subtis e insidiosas, muitas vezes disfarçado sob a máscara da normalidade. O filme retrata personagens como o oficial nazi Paul Doll, que representa o arquétipo do líder corrupto e autoritário, cujo poder é mantido pela opressão e pela manipulação, mas também é mostrado o judeu Szmul, que colabora com os nazistas para garantir sua própria sobrevivência. Durante o longa-metragem, somos desafiados a olhar para além de estereótipos simplistas (bons & maus, éticos & corruptos) e encarar a complexidade da natureza humana.
Nos voltando para as organizações modernas, onde a pressão por resultados, muitas vezes, conflita com considerações éticas, a noção do conceito da banalidade do mal assume uma relevância particular. Os escândalos de corrupção que assolam empresas e instituições em todo o mundo frequentemente não são resultados de ações de indivíduos malévolos que agem de forma totalmente isolada, mas sim de uma cultura organizacional que tolera e até mesmo encoraja comportamentos antiéticos em nome do lucro e dos resultados.
Assim como Eichmann, retratado por Arendt como um burocrata eficiente e banal, muitos indivíduos envolvidos em casos de corrupção podem parecer ordinários e até mesmo respeitáveis à primeira vista. No entanto, é precisamente essa normalidade aparente que torna sua conduta tão perigosa, pois ela obscurece a verdadeira natureza de suas ações e facilita a disseminação da corrupção dentro das organizações.
Ao refletirmos sobre as lições do filme "A Zona de Interesse", trazendo para a realidade nas nossas organizações atuais, somos lembrados da necessidade de constantemente cultivar uma cultura de responsabilidade e de integridade. Nem todos temos a possibilidade de nos tornarmos carrascos, mas nós permitimos, ou os encorajamos, a cometer atrocidades em prol do nosso conforto e segurança.
O filme expõe as falhas do tecido social de forma perturbadora, sugerindo que a recusa em agir diante da injustiça pode ser tão prejudicial quanto a própria injustiça e a apatia e a complacência podem ser formas de consentimento tácito para atrocidades. A ideia de que todos nós possuímos um potencial sombrio para a crueldade e a corrupção pode ser perturbadora, mas também é libertadora, pois nos isenta da ilusão reconfortante de nossa própria inocência. O desafio à banalidade do mal, onde quer que ela se manifeste, se concretiza pelo reconhecimento da nossa capacidade de intervir na realidade não apenas como espectadores passivos e indiferentes, mas como agentes ativos de mudança.