António da Costa Alexandre, Jornal i online

O interesse público pode justificar a procura de tecnologias que não visem o lucro, em prol do progresso que apresente benefícios e melhoria do índice de desenvolvimento humano dos administrados

A Administração Pública tem sido considerada a área onde as oportunidades e os desafios da Inteligência Artificial constituirão uma prioridade na agenda e com repercussões sentidas pelos administrados, com particular destaque para organizações como a União Europeia (EU) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

A questão de implementação e utilização da IA na Administração Pública deve ser encarada numa dupla perspetiva. Em primeiro lugar, estão atribuídas à Administração Pública funções regulatórias competindo-lhe ditar regras no âmbito do funcionamento da atividade económica e autorizar a introdução no mercado de novos produtos e serviços em função das respetivas características.  Por outro lado, também é encarada como potencial "primeiro comprador"; basta pensar nas várias áreas que abarca e na multiplicidade de entidades e organismos que gravitam na sua órbita.  A UE tem atribuído maior ênfase ao papel regulador da Administração Pública, ficando de algum modo negligenciado o papel de beneficiária direta dos sistemas de IA e ao papel de “primeiro comprador”, que lhe é atribuído.

Nos procedimentos da Administração Pública, os sistemas de IA são considerados como ferramentas que podem conduzir a enormes benefícios quanto à eficiência no processo de formulação de políticas públicas, assim como na prestação de serviços aos administrados, permitindo maior eficiência e níveis mais elevados de satisfação e confiança no serviço público.

Nesta perspetiva, a Administração Pública também pode ser encarada nos seus aspetos distintivos da iniciativa privada, na prossecução do interesse público divergente do lucro que preside às entidades privadas, nomeadamente no estudo e implementação de sistemas de IA que não visam apenas proveitos económicos. O interesse público pode justificar a procura de tecnologias que não visem o lucro, em prol do progresso que apresente benefícios e melhoria do índice de desenvolvimento humano dos administrados.

Ainda no século XIX, em 1866, Fustel de Coulanges considerou a substituição de crenças religiosas, como princípio de governo, pela “crença” no interesse público que esteve na origem da edificação das sociedades modernas. Defendem muitos autores a insuficiência de uma abordagem jurídica stricto sensu de interesse público, advogando a necessidade de abordagens mais amplas que abarquem o desenvolvimento humano.

A Administração Pública tem um papel determinante na implementação do interesse público, alguns autores definem como o “universal label” que envolve as políticas públicas e os seus diversos programas de execução. O interesse público geralmente é considerado um bem pela comunidade. Contudo, tanto pode ser usado para promover políticas públicas que representam um efetivo bem comum, como para obscurecer outras cuja aceitação da comunidade não é tão evidente. Por exemplo, Walter Lippmann, em 1955, referia: “pode-se presumir que o interesse público é o que os homens escolheriam se vissem com clareza, pensassem racionalmente e agissem desinteressadamente e benevolentemente.” (tradução nossa).

No âmbito das considerações sobre interesse público, não pode deve ser descurado o Índice de Desenvolvimento Humano (IDR) que se encontra estabelecido desde 1990 no Human Development Report (1990) emitido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que nas diversas evoluções procura contribuir para a correção de distorções do modelo proposto pelo IDH, no que se refere ao papel da pobreza e das desigualdades no desenvolvimento.

No Relatório da Nações Unidas de 2010, o desenvolvimento humano pode conferir a possibilidade de vidas mais longas, saudáveis e criativas alcançando objetivos com compromissos que moldem um desenvolvimento com vista à igualdade e sustentabilidade do planeta que compartilhamos. O economista Amartya Sen, vencedor do prémio Nobel da economia em 1998, que influenciou o primeiro documento das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano nos seus estudos sobre a ética e a economia, defende que o critério de utilidade deverá ser substituído pela noção de liberdades substantivas, considerando a autonomia da escolha livre que permita liberdades reais, vividas, que muitas vezes são chamadas de "capacidades": liberdades de oportunidades e não apenas de direitos teóricos e com reais condições de uma vida que faz sentido valorizar.

Na ética da IA, não encontramos reflexões que englobem a conjugação do interesse público que a Administração Pública e as suas entidades e organismos devem prosseguir, numa perspetiva do desenvolvimento humano preconizado pelas Nações Unidas. De facto, as referências à pobreza e às desigualdades, que segundo alguns autores a IA já está a acentuar e que poderão vir a acentuar-se no futuro, embora estes temas sejam ainda pouco explorados no contexto da ética da IA.

Além disso, a desigualdade, incluindo os dados relativos à tecnologia avançada, está aumentando com o fosso entre os países de alto e baixo desenvolvimento humano, por exemplo, no que se refere à tecnologia digital, como telefonia móvel e banda larga. É esta exclusão digital que importa também refletir, não descurando a própria exclusão digital interna de sociedades menos carenciadas, assim como a importância da literacia digital conferindo a consciência da existência de algoritmos que sem intervenção humana decidem aspetos da vida em comunidade.

A base desta problemática, embora não sendo nova, apresenta contornos atuais, que merecem investigação no sentido de procurar caminhos e estratégias. Por um lado, que possam alterar as desigualdades potencialmente provocadas pelas tecnologias, mas também que possam funcionar em sentido contrário contribuindo para a diminuição das desigualdades refletidas ancestralmente na sociedade.

A filosofia, nomeadamente a ética, e demais ciências sociais, numa perspetiva multidisciplinar, desempenham, neste contexto, um papel fundamental contribuindo com reflexões, que não só devem influenciar as políticas públicas para uma repartição mais justa da renda, mas também servir para avaliar as implicações da IA, nomeadamente  sobre o sentido da vida dos novos «inúteis», excluídos do mercado de trabalho por efeito da automação, e ainda sobre a própria dignidade que o trabalho confere ao Homem e/ou se queremos uma sociedade semelhante à distopia que Huxley descreveu em o “Admirável Mundo Novo” em que uma substância química «soma» resolvia todas as angústias e frustrações das pessoas.

A filosofia e, em particular, a ética, procurando também ir ao encontro do interesse público, podem igualmente contribuir na definição do equilíbrio que as tecnologias podem oferecer na abordagem e no estudo de valores com capacidade para influenciar as políticas públicas na implementação da IA na sensibilização, prevenção e combate às alterações climáticas, mas também questionando o estilo de vida ocidental em que o status social é chancelado também pelo consumismo que confere estatuto e aceitação no grupo ou classe a que as pessoas pertencem ou almejam pertencer.

Embora não seja líquido que exista uma unanimidade que defenda a irradicação das desigualdades, alguns autores entendem que a existência das desigualdades é essencial para o funcionamento da economia, considerando ainda que o interesse público também pode ser invocado na defesa de interesses antagónicos, consoante os protagonistas das políticas públicas. Ainda assim, entendemos que o interesse público tal como é acima definido por Lippmann, procurando alcançar os objetivos do índice de Desenvolvimento Humano, deve ser conjugado no âmbito da ética da IA na Administração Pública.

 O contributo de Uma Teoria da Justiça preconizada pelo neocontratualista John Rawls, parece dever ser considerado neste tema. Rawls defendeu uma posição inicial em que os membros da comunidade estariam cobertos com o “véu da ignorância” não tendo, por isso, qualquer conhecimento quanto ao lugar que ocuparão na sociedade, ou seja, se seriam beneficiados ou explorados/ discriminados. O autor defende que seriam estas as condições ideais para serem escolhidos, consensualmente, os princípios de justiça, em que assenta a cooperação social, a organização política, e que orientarão a atribuição de direitos e deveres básicos, assim como a divisão social dos benefícios. Parece-nos que esta teoria poderá ter um contributo importante na conjugação que a ética da IA deverá fazer com o interesse público, procurando alcançar propostas que promovam uma IA ética, reforçada com o interesse público que deve nortear as políticas públicas e as decisões dos dirigentes da Administração Pública.