José António Moreira, Expresso online
“198. Criar o protocolo “zero economia paralela”, com o objetivo de em seis anos recuperar tendencialmente todos os valores movimentados no âmbito da economia paralela para a economia nacional (cerca de 89 mil milhões de euros ano).” (Cap. VIII do Programa Eleitoral do Partido Chega)
De quando em vez, de modo particular em períodos pré-eleitorais, a “economia paralela” (EP), que de uma forma mais científica se designa como “economia não registada” (ENR), surge como a solução fácil para atacar, sem dor, o problema difícil do aumento de arrecadação de receita fiscal. Quase como se a EP fosse o pote de ouro que estivesse esquecido algures, aguardando ser descoberto por olhares penetrantes que chegam e veem o que antes nunca ninguém viu.
Em Portugal, como em todos os países, há EP, fluxos económicos e financeiros que não são declarados para efeito de tributação e que, por isso, geram a denominada “evasão fiscal”. É ideia correntemente partilhada e aceite que o país se posiciona, no conjunto dos países desenvolvidos, num lugar cimeiro entre os que mais sofrem deste fenómeno. A questão cultural, assente na má relação dos cidadãos e empresas com o Estado – vendo este como uma entidade distinta deles próprios, que só tem obrigações e não possui direitos – é uma das principais razões apontadas para justificar tão desprestigiante lugar na escala da evasão; a outra, o elevado nível de tributação, direta e indireta, a que aqueles estão sujeitos.
A EP, como ideia, é um pseudo-conceito, uma expressão difusa, difícil de compreender quanto ao respetivo âmbito e, até por isso, difícil de medir com um mínimo de fiabilidade. Quanto ao primeiro destes aspetos, referências a EP deveriam ser acompanhadas de uma substanciação do que aí está incluído. Assumindo que EP tem o mesmo significado que ENR, e utilizando informação que sobre esta é disponibilizada em estudos científicos, o respetivo âmbito engloba, nomeadamente, a economia ilegal, a economia oculta e informal e o autoconsumo. Também aqui não é possível traçar linhas divisórias precisas entre estas categorias, nem definir com exatidão o âmbito de cada uma. Porém, o autoconsumo – por exemplo, a hortaliça que alguém cultiva para si próprio – não é passível de ser medida na “economia nacional” ou, sendo-o, nunca gerará receita fiscal; e a economia ilegal, por definição, também não será parte da “economia nacional” pois, quando descoberta, é desmantelada – por exemplo, o tráfico de droga.
Quanto à dimensão da EP, essa foi, desde sempre, a grande incógnita, salvo em períodos pré-eleitorais, quando emerge das profundezas como certeza que sustenta projeções de arrecadação de receita fiscal que permitam justificar todos os devaneios em termos de nova despesa pública. Há estimativas que regularmente são divulgadas – como é o caso do estudo Índice da ERN (Óscar Afonso, FEP) –, mas o modo indireto como são obtidas, a respetiva variabilidade consoante os estudos e a amplitude das categorias inseridas na ideia de EP, tornam tais valores de reduzida utilidade na definição concreta de políticas públicas.
Neste aspeto reside a quimera que dá título a esta crónica. Pegar-se na ideia de EP, numa estimativa (no caso referido, correspondente a cerca de 40% do PIB … por ano) de que se não conhece a fiabilidade, nem o que abrange, e admitir-se que por efeito de atuação governativa se consegue saltar, sem mais, dessa previsão para uma outra de arrecadação de impostos, é um ato que se pode classificar, no mínimo, de imaginação criativa. Pena é que, na realidade, também neste domínio, não exista solução fácil para um problema difícil.
Não acreditar nas estimativas da EP, ou que seja possível como por golpe de magia transformar EP em “economia nacional”, não significa negar que ela existe e que é possível fazer algo para a circunscrever. Existe e mereceria atenção de um próximo governo do país. O combate à EP deveria ser objeto de políticas (realistas) direcionadas para a combater, de modo a caminhar-se para uma sociedade fiscalmente mais justa, em que cada um contribua segundo os seus rendimentos. Algo está errado quando, ano após ano, cerca de 40% das empresas não paga IRC e cerca de 50% do total deste imposto é pago por 0,5% das empresas; quando sinais exteriores de riqueza são visíveis um pouco por todo o lado; quando os funcionários públicos parecem ser (quase) os únicos trabalhadores que pagam impostos por cada cêntimo de remuneração que recebem.
Criminalize-se o enriquecimento ilícito, investiguem-se os sinais exteriores de riqueza, utilizem-se, quando necessários, métodos indiciários para determinação do rendimento das empresas e empresários, prossigam-se os esforços ténues que nalguns destes domínios já têm vindo a ser feitos. O combate à EP – indiretamente à fraude fiscal – tem de estar no topo das prioridades, tem de ser uma nova frente de batalha numa guerra que não se pode perder. Faça-se desta luta um objetivo para uma geração, para deixar aos mais jovens um país mais justo e próspero. Porém, assegure-se, sempre, que o sistema de justiça funciona em tempo útil e a preços acessíveis ao comum dos cidadãos, para salvaguarda dos direitos destes face a eventuais desmandos de quem é incumbido de executar as políticas públicas neste domínio.