Rute Serra, Expresso online

Reduzir a problemática da corrupção à “obtenção de ganho privado através de abuso de poder confiado”, ignorando o seu caráter transnacional e geoestratégico, considerando o seu impacto negativo na segurança dos direitos humanos e dos próprios Estados, é equivalente a assobiar para o lado ou fazer check num problema a subir constantemente nos rankings da perceção da corrupção, não a encará-lo de modo sério

Na espuma dos dias de campanha eleitoral, parece que a batuta no que concerne à agenda anticorrupção em Portugal, anda descompassada da música que toca a nível internacional, a qual incide, queira-se ou não, indelével, na nossa vida.

O (também ele descompassado) calendário político atual atrasou dramaticamente o que devia já estar, neste conspecto, a ser feito. Relembra-se que a Estratégia Nacional Anticorrupção (2020-2024) devia estar já planeada e, pelo menos, em vias de ser publicada, porém, estamos na estaca zero.

Malgrado esta condição perversa, soma-se o prometido pelo panorama partidário, uns com melhor hálito que outros – um discurso programático centrado na regulação do lóbi e na criminalização do enriquecimento ilícito – temas há muito legislados na maioria dos países europeus. O que prova o nosso atraso crónico e uma insuportável indolência, da qual já o saudoso Eça se queixava.

Reduzir a problemática da corrupção à “obtenção de ganho privado através de abuso de poder confiado”, ignorando o seu caráter transnacional e geoestratégico, considerando o seu impacto negativo na segurança dos direitos humanos e dos próprios Estados, é equivalente a assobiar para o lado ou fazer check num problema a subir constantemente nos rankings da perceção da corrupção, não a encará-lo de modo sério.

Em dezembro transato, foi adotado pela Comissão Europeia o pacote de “Defesa da Democracia”, no qual se incluem medidas legislativas e não legislativas, destinadas a mitigar a influência estrangeira subliminar, percecionada na nossa vida democrática. Através, não só mas também, do fomento da participação cívica pretende-se fortalecer a democracia europeia, tornando-a mais resiliente. Este pacote surgiu em resposta aos 81% que se manifestaram preocupados com a interferência estrangeira nos nossos sistemas democráticos, no último Eurobarómetro especial Cidadania e Democracia.

O foco da União Europeia na corrupção estratégica - aquela que a Rússia (entre outros Estados autocráticos) dissemina pelo menos desde a década de 90, através do estabelecimento de laços económicos ilícitos, ameaçando enormemente, desse modo, a segurança internacional, não obstante carecer de ajustes, é um facto relevante ao qual deve ser dada atenção.

A ameaça paira sobre os centros financeiros da Europa, alvo da introdução de fluxos constantes de dinheiros sujos, com vista a condicionar a ação política desses Estados. E sabemos que Portugal, apesar da sua dimensão, não está imune. O objetivo último é capturar os Estados do Ocidente, considerando a dependência económica estabelecida.

Quando falamos de corrupção estratégica – conceito ainda pouco conhecido em Portugal, mas o qual ganhará, inevitavelmente, protagonismo nos próximos tempos – estamos a referir-nos a uma arma reinventada para mudar a dinâmica do poder, no cenário geopolítico. Atente-se, por exemplo, no caso do ex-chanceler alemão Gerhard Schröder, o qual enfrenta acusações criminais por ter integrado, no ano em que cessou funções, o Conselho de Administração da Gazprom. Mas não só. Existem provas de financiamento ilegítimo da Rússia, a partidos políticos europeus, como sejam a Frente Nacional em França, a AfD na Alemanha e os Conservadores no Reino Unido, estratégia utilizada para minar a capacidade do Parlamento Europeu de sancionar a Rússia.

Nunca como hoje é tão importante defender a democracia. Quem conseguir alinhar os objetivos da política externa com os propósitos anticorrupção, através da mitigação de vulnerabilidades nas instituições governamentais e na tomada de decisões, estará no caminho certo. O que precisamos é de um governo que garanta a eficácia do enquadramento normativo de integridade, nos setores público e privado, através da lente geopolítica, de modo aberto e responsável.

Esta deve ser a nova agenda anticorrupção. A começar a ser pensada já.