José António Moreira, Expresso online

A criatividade nas contas públicas portuguesas foi levada a um nível superior nos anos mais recentes, em termos de persistência e sofisticação. A tal ponto que, olhando para os valores do défice e da dívida, faz sentido pensar se não se está perante castelos de cartas que uma qualquer suave brisa poderá fazer desmoronar

A informação contabilística das empresas produz consequências a diversos níveis, nomeadamente no acesso ao financiamento e respetivo custo. Por exemplo, empresas com um nível de endividamento elevado ou resultados do período fracos defrontarão dificuldades em se financiarem e o juro a pagar refletirá o risco acrescido que representam para os seus financiadores.

No caso dos países acontece algo de semelhante. Os valores do défice orçamental e da dívida pública são informação a que os mercados financeiros estão atentos. Por isso, os recentes números da redução nominal da dívida pública relativos ao pretérito ano deverão ser motivo de regozijo para todos os cidadãos, mesmo para aqueles que são de opinião de que a dívida não é para pagar.

Porém, tal como os números das empresas podem ser “dourados” com o auxílio de truques – a denominada criatividade contabilística –, também ao nível das contas públicas, centrados nos valores do défice e da dívida, se encontram incentivos à utilização de medidas de criatividade similares aos das empresas. Diferem, apenas, quanto ao “modus operandi” e às variáveis que são objeto desta.

Em Portugal, as cativações, usadas para comprimir o défice orçamental, foram o truque principal utilizado pelo Governo. Período após período, conseguiu esmagar o défice à custa de atrasos no pagamento a fornecedores do Estado e da redução do investimento em infraestruturas e serviços públicos. Em final de mandato, um esforço adicional de criatividade puxou a dívida pública abaixo de 100% do PIB, em parte com o auxílio do adiamento para 2024 de tomada de empréstimos que, em condições normais, deveriam ter sido emitidos em 2023; da amortização antecipada de empréstimos, onde a redução dos depósitos das administrações públicas a mínimos de muitos anos parece ter desempenhado papel de relevo.

Não fora o facto de a criatividade contabilística não criar valor, qualquer gestor ou ministro poderia ser um Midas, transformando em ouro tudo o que tocasse. Acontece, porém, que essa criatividade apenas possibilita a transferência de valor (resultados, défice) de uns períodos para outros. A melhoria que daí resulta num ano ocorre, em geral, à custa de um ano subsequente, através da antecipação de rendimentos que neste era suposto ocorrerem ou do diferimento de gastos ou compromissos presentes. Daí resulta, obviamente, que quando se chega ao período seguinte esse “buraco”, dos resultados que foram antecipados, aparece em todo o seu esplendor. A denominada “reversão dos efeitos”.

A fatura da criatividade adotada para proporcionar uma imagem favorável no défice (e, por arrastamento, na dívida) é visível, os efeitos sentem-se, de modo particular, ao nível da degradação dos serviços públicos e da agitação laboral na Administração Pública, à medida que o impacto de ações criativas passadas tem vindo a reverter. Quanto à redução monetária da dívida pública, em final do ano, especialmente na parte que foi conseguida através do adiamento da tomada de empréstimos em 2023 e da utilização de depósitos das administrações públicas, a reversão tenderá a ocorrer no corrente ano de 2024.

O ministro cessante ficará com a medalha de ter colocado a dívida pública abaixo de 100% do PIB pela primeira vez desde 2009. Ninguém prestará particular atenção ao modo como conseguiu tal feito. O novo ministro terá o ónus de lidar com as más notícias geradas por ações criativas precedentes. Gerirá em 2024 uma dívida pública armadilhada pela reversão dos efeitos de tal criatividade. Dificilmente conseguirá mostrar uma boa imagem a este nível. Já está a perder antes do jogo começar.

A criatividade nas contas públicas portuguesas não é de agora. Acontece que foi levada a um nível superior nos anos mais recentes, em termos de persistência e sofisticação. A tal ponto que, olhando para os valores do défice e da dívida, faz sentido pensar se não se está perante castelos de cartas que uma qualquer suave brisa poderá fazer desmoronar a todo o momento.