Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Nas últimas décadas habituámo-nos a sentir ‘na pele’ os efeitos adversos de eventos iniciados noutras partes do mundo, lembrando-nos que o mundo está completamente interligado, fruto da globalização.

Alguns autores têm mesmo chamado os anos mais recentes e vindouros de ‘permacrise’, ou seja, um estado de crise permanente – incluindo também os efeitos das alterações climáticas, que não vou aqui abordar. Considero esta uma visão demasiado pessimista, penso que, começando por resolver algumas crises – assim haja bom senso dos líderes atuais em conflito ou dos que os sucederão –, poderemos ajudar a solucionar as demais.

Neste milénio, recordo a ‘grande recessão’ de 2008 (com origem no segmento ‘subprime’ do mercado imobiliário dos EUA), que contribuiu para a crise de dívidas soberanas dos anos seguintes, para a qual Portugal foi arrastado após anos de forte subida do rácio da dívida pública nos governos de José Sócrates, que teve de pedir ajuda externa e nos levou ao duro programa de ajustamento de 2011-2014.

Estas foram crises que penalizaram a atividade económica a nível global e nacional, tendo sido minoradas por uma expansão monetária sem precedentes, com realce para as taxas de juro próximas de zero e gigantescos programas de compras de ativos adotados pelos principais bancos centrais.

Por seu turno, as crises dos últimos anos refletiram-se no ressurgimento da inflação – a par com o efeito adiado de anos a fio de forte expansão monetária – e levaram a uma vincada inversão da política monetária, com uma subida historicamente rápida e forte das taxas de juro. A pandemia por covid-19, em 2020-2021, originou uma disrupção das cadeias logísticas internacionais, a que se seguiu, desde fevereiro de 2022, a guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços da energia (com origem na União Europeia, pela necessidade de corte com a energia barata da Rússia), mas também afetou o comércio internacional face às sanções ocidentais à Rússia e às restrições do transporte de cereais no Mar Negro.

A fratura cada vez mais vincada em dois blocos geopolíticos em torno de EUA e China, da qual a guerra na Ucrânia pode ser considerada uma manifestação, estendeu-se desde outubro de 2023 ao Médio Oriente com o ataque do Hamas a Israel – patrocinado pelo Irão, aliado da Federação Russa, por sua vez na esfera da China – e a subsequente escalada com o contra-ataque de Israel em Gaza, que prossegue há vários meses. Desde dezembro de 2023, os Houtis do Iémen, também sob patrocínio do Irão, começaram a bombardear cargueiros na rota do Mar Vermelho, no que constitui um alastramento regional da crise do Médio Oriente, levando os EUA e o Reino Unido a intervir para defender essa rota, que pesa cerca de 12% do tráfego marítimo internacional, segundo especialistas na matéria.

Assim, um ponto comum nestas várias crises recentes, que também tem contribuído para a elevação da inflação, é a subida dos custos de transporte marítimo a nível internacional, que é o tema principal deste artigo. Estes custos vinham a recuar para níveis mais normais (após a fortes subidas com a pandemia e, posteriormente, devido à guerra na Ucrânia), mas desde dezembro que voltaram a disparar em face dos ataques dos Houtis no Mar Vermelho, que continuam por estes dias.

Face a estes ataques, os transportadores têm duas opções: ou evitam essa rota, implicando um desvio enorme usando a rota do Cabo da Boa Esperança (África do Sul), ou então arriscam navegar pelo Mar Vermelho, mas cobram mais ao cliente, em ambos os casos elevando o custo do transporte marítimo.

A dinâmica de subida dos custos de transporte marítimo é visível no índice sintético Baltic Exchange Dry Index (abrangendo diversas rotas internacionais relevantes), que subiu fortemente em dezembro do ano passado e, apesar de uma recente correção em baixa (efeito sazonal passado o grosso do tráfego do Natal), continua a registar um forte crescimento homólogo (139% em 7 de fevereiro face ao mesmo dia de 2023; a variação homóloga no pico de 5 de janeiro foi de 148%).

No que se refere à componente dos contentores medida pelo Freightos Baltic Index (FBX) – Global Container Freight Index, a subida homóloga é menor (69% em 2 de fevereiro, que é o valor mais recente, pois a atualização do índice é apenas semanal), mas há menos oscilações e o índice estabilizou recentemente num nível relativamente elevado. Trata-se de um indicador complementar que atesta a tendência de subida recente do custo do transporte marítimo.

Quanto ao impacto da subida desse custo na inflação, vou socorrer-me de um estudo do FMI de março de 2022, motivado precisamente pelo impacto da pandemia por covid-19 nesses custos.

Segundo esse estudo, intitulado “Shipping Costs and Inflation” (2022) de Carrière-Swallow, Deb, Furceri, Jiménez e Ostry, com base num painel de 46 países entre 1992 e 2021, a elasticidade da inflação doméstica face aos custos de transporte marítimo medidos pelo Baltic Exchange Dry Index é de 0,0067 no seu valor máximo, após doze meses. Isto significa que uma subida de 1% nesses custos leva a um aumento máximo de 0,0067 pontos percentuais (p.p.) na inflação homóloga passado um ano. Assim, fazendo as contas com as subidas reportadas acima do índice (subidas homólogas de 148% a 5 de janeiro, no pico recente, ou 139% em 7 de fevereiro, o último valor), chegamos a impactos na inflação doméstica dos países (incluindo Portugal) na ordem de 0,9 p.p. a 1,0 p.p. passado um ano, o que é significativo, mas para que esses acréscimos se apliquem a um ano completo é preciso que as subidas do índice usadas nos cálculos se mantenham também no horizonte de um ano. Assim, se o efeito passar passados 6 meses, o adicional será cerca de metade num ano, na ordem dos 0,5 p.p., o que também não deixa de ser relevante. Para já, passaram dois meses desde os ataques dos Houtis, pelo que há que estar atento a estes custos.

Caso esses custos persistam elevados, o seu impacto direto na inflação penalizará o orçamento das famílias e das empresas, podendo ainda adiar a descida das taxas de juro diretoras do BCE, prolongando as dificuldades sentidas no pagamento de juros do crédito contraído em face do nível ainda historicamente elevado das taxas de juro.

E nesta análise simples estou a assumir que os custos da energia se mantêm contidos, um pressuposto que facilmente poderá sair frustrado se a crise no Médio Oriente se agravar, tratando-se de uma das regiões do globo com maior concentração de produtores de petróleo e das mais instáveis.

Mais recentemente, a morte de três soldados norte-americanos por milícias pró-iranianas, na Jordânia, já levou os EUA a ripostar atacando combatentes pró-iranianos no Iraque e na Síria, pelo que, infelizmente, facilmente poderão surgir novas escaladas nesta crise do Médio Oriente, mas vamos assumir que não, para efeitos de análise, até porque há eleições presidenciais nos EUA este ano e não interessa à Administração Biden um aprofundamento desta crise.

Usando as projeções mais recentes para a economia portuguesa do Banco de Portugal, do Boletim Económico de dezembro, a previsão de inflação foi revista em baixa para 2,9% em 2024 (face a um valor de 3,6% no Boletim de outubro). Se admitirmos que os custos com o transporte marítimo continuam elevados por mais quatro meses, a inflação este ano poderá ficar próxima de 3,4% (mais 0,5 p.p.), mas se admitirmos que não baixarão em 2024, a inflação poderá aproximar-se dos 4% (+1,0 p.p.), o que já é um valor alto, sobretudo se considerarmos o impacto acumulado da inflação passada – recorde-se que viemos de valores de 8,8% em 2022 e 5,3% em 2023, como já há muito não víamos no nosso país.

No cenário de inflação mais adverso, se o governo que sair das eleições de 10 de março não tiver a preocupação de devolver o excesso de receita fiscal face ao orçamentado – como foi o caso do atual governo, agora em gestão, cujos ‘brilharetes’ nas contas públicas foram explicados, em grande medida, pelo efeito da inflação, além do boom temporário do turismo e alguma ‘engenharia financeira’ –, continuaremos a assistir ao agravamento da carga fiscal para novos máximos históricos à custa de famílias e empresas, sem que isso tenha, até ao momento, beneficiado os serviços públicos, cuja degradação é evidente aos olhos de todos, pelo que o prejuízo é a duplicar.