Miguel Viegas, OBEGEF
A repartição da pegada de carbono entre países e indivíduos é profundamente assimétrica. Reflete a profunda desigualdade na distribuição do rendimento e da riqueza. Por esta razão, a resolução do problema climático passa também por uma repartição mais equilibrada do produto, incluindo políticas fiscais mais justas.
A redução das desigualdades e o combate às alterações climáticas são dois desafios principais que se colocam à sociedade e aos governos do planeta. As desigualdades, depois de uma redução sem paralelo na história da humanidade ao longo do século XX, voltaram a crescer a partir dos anos oitenta e continuam em ascensão. As alterações climáticas representam outra tragédia, associada à elevada concentração de dióxido de carbono na atmosfera que provoca um aumento da temperatura, com as consequências que todos conhecemos. Na realidade, ambos os problemas estão relacionados e muito dificilmente será possível resolver um sem o outro. O nó górdio da questão reside num completo desalinhamento entre incentivos, capacidade e vulnerabilidade. Sem resolver este conflito, dificilmente teremos uma verdadeira solução, inclusiva e sustentável.
Figura 1: Pegada de carbono per capita em Toneladas de CO2 (Fonte: World Inequality Database (WID.world)).
A contribuição para a elevada concentração de CO2 na atmosfera é muito diferenciada entre países e continentes como é visível na Figura 1. Como é reconhecido por toda a comunidade científica, foram os países ditos desenvolvidos, com as suas economias assentes na combustão de combustíveis fósseis que mais contribuíram, ao longo de décadas, para o aquecimento do planeta. Como é visível na Figura 2, a situação tem-se mantido mais ou menos constante ao longo dos últimos anos. Com exceção do ano de 2020, onde a pandemia “congelou” o planeta, cada ser humano nos Estados Unidos e na União Europeia continua a emitir respetivamente seis e três vezes as emissões de CO2 de um habitante em África.
Figura 2: Pegada de carbono per capita em Toneladas de CO2 nos Estados Unidos, União Europeia e África (Fonte: World Inequality Database (WID.world)).
Num outro ponto de vista, a desigualdade nas emissões de CO2 por ser analisada de forma individual, de acordo com os percentis na distribuição do rendimento mundial. Num relatório publicado pela Oxfam em novembro de 2023, estima-se que os 1% mais ricos (77 milhões de pessoas) são responsáveis por 16% das emissões mundiais, ou seja, emitem tanto quanto os 66% mais pobre do planeta (5 mil milhões de habitantes). Os 10% mais ricos são responsáveis por metade de todas as emissões mundiais.[1] Os 1% mais ricos emitem em média 75,6 toneladas de CO2 por ano enquanto os 10% mais ricos emitem 25,2. O nível acordado internacionalmente e considerado necessário para garantir a sobrevivência dos nossos ecossistemas é de 2,8 toneladas de CO2. Contudo, se olharmos para o estilo de vida de alguns milionários, podemos chegar a uma pegada de 8 mil toneladas de CO2/ano (Barros & Wilk, 2021)!
Esta situação ajuda a compreender o impasse que caracteriza as sucessivas Conferências das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) onde os resultados têm ficado sempre muito abaixo das expetativas. Os meios para poder financiar uma transição climática justa e eficaz só podem ser obtidos taxando a riqueza onde ela existe, ou seja, junto dos mais ricos, que são também os maiores poluidores. Mas estes, apesar se serem aqueles para quem o custo marginal de reduzir é mais baixo (vejam o que significa para um milionário reduzir a sua pegada de uma tonelada e comparem o que representa esta redução para uma pessoa pobre ou remediada) são aqueles que menos sofrem as consequências das mudanças climáticas e portanto são também aqueles que menos incentivos têm para reduzir as suas emissões. Acresce que os mais ricos são também os responsáveis quer pelas escolhas económicas em termos de investimentos, mas igualmente pelas escolhas políticas uma vez que são eles que financiam os partidos e detém também uma boa parte dos órgãos de comunicação social.
A história recente, designadamente no decurso das duas guerras mundiais do século XX, demonstra que foi possível taxar de forma extraordinária as grandes fortunas para acudir às grandes necessidades globais. Com os níveis atuais extremos de concentração da riqueza é possível obter fundos avultados com taxas de incidências muito baixas. Estudos realizados no pelo World Inequality Lab. atestam que um imposto global entre 1,5 e 3% sobre a riqueza dos centimilionários do mundo (os 65 mil indivíduos mais ricos do mundo que possuem mais de 100 milhões) permitiria arrecadar uma soma anual de 300 mil milhões de dólares, sem beliscar a atual concentração da riqueza (Chancel et al., 2023).[2] Caso este imposto seja apenas aplicado aos Estados Unidos e União Europeia, a receita seria da ordem dos 175 mil milhões. Muitas outras soluções têm sido propostas para financiar a transição ecológica. Contudo todas esbarram na falta de vontade política. Mobilizar e informar a população torna-se assim a tarefa prioritária de organizações como o OBEGEF, para alterar a correlação de forças e permitir que as boas decisões sejam tomadas a bem do nosso planeta.
Referências:
Barros, B., & Wilk, R. (2021). The outsized carbon footprints of the super-rich. Sustainability: Science, Practice and Policy, 17(1), 316–322.
Chancel, L., Bothe, P., & Voituriez, T. (2023). Climate Inequality Report: Fair Taxes for a Sustainable Future in the Global South.
Khalfan, A., Lewis, A. N., Aguilar, C., Persson, J., Lawson, M., Dabi, N., Jayoussi, S., & Acharya, S. (2023). Climate equality: a planet for the 99%. Oxfam Australia. https://doi.org/10.21201/2023.000001
[1] O estudo foi realizado com dados do Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo (Khalfan et al., 2023).
[2] O imposto é concebido da seguinte forma: ativos líquidos detidos entre 100 milhões de dólares e mil milhões de dólares seriam tributados a 1,5%, ativos líquidos entre mil milhões de dólares e 10 mil milhões de dólares a 2%, ativos entre 10 mil milhões de dólares e 100 mil milhões de dólares a 2,5%. e ativos acima de US$ 100 bilhões, em 3%.