Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
No passado dia 16 de dezembro, completaram-se três anos sobre o negócio da venda das seis barragens da bacia do Douro Internacional pela EDP. Três anos de opacidade e de deslealdade para com o interesse público do Povo da Terra de Miranda e do país inteiro. Opacidade das empresas envolvidas, do Governo e da Administração Pública.
Ao fim destes três anos, parece que o Estado não sabe o que se passou, não sabe se são devidos impostos ou não e, perante as evidências de que são devidos, parece não os desejar cobrar.
Mas há uma coisa que se sabe. Para usar uma linguagem simpática, o Governo e a Administração Pública falharam na sua missão de promoção do Interesse Público. Neste negócio das barragens houve intervenção de cinco entidades públicas: a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTP), a Parpública, e o Governo.
Comecemos pela APA. Primeiro, autorizou o negócio da venda das barragens contra o parecer da sua diretora de serviços competente na matéria, que propôs, fundamentadamente, a rejeição do negócio, evocando, nomeadamente, que a EDP estava em incumprimento dos seus deveres contratuais e que o Estado devia exigir uma compensação adicional pela prorrogação do prazo de concessão das três barragens do Douro Internacional, realizada em 2007 pelo então ministro Manuel Pinho pelo valor de 680 milhões de euros, quando as barragens estavam a ser vendidas por perto do triplo. Segundo, não é conhecido o parecer que sustentou a autorização do negócio, nem se sabe se ele existe. Sabe-se, isso sim, que o incumprimento contratual pela concessionária continua e que o Estado não foi ressarcido dos seus direitos financeiros. Terceiro, concedeu gratuitamente à EDP o direito de bombar água do Rio Douro para montante das duas barragens do Rio Sabor sem qualquer contrapartida, apesar de esse direito ser determinante para que as barragens sejam viáveis e valer, por isso, muitos milhões de euros. Esse direito extinguiu-se com o negócio da venda das barragens, mas a APA decidiu mantê-lo.
Vejamos agora o caso da AT. Tinha, antes do negócio, o entendimento de que este tipo de operação está sujeito ao Imposto do Selo e ao IMT, e que as barragens estavam sujeitas ao IMI. Porém, pouco antes da realização do negócio, estranhamente, mudou a sua posição e passou a dizer o contrário, que o negócio de venda de concessões pode não estar sujeito ao Imposto do Selo e que os prédios que compõem as barragens são bens do domínio Público e, portanto, não pagam IMI nem IMT. A mudança de entendimento relativamente ao Imposto do Selo tem a característica de ter sido efetuada numa segunda informação vinculativa, requerida pela mesma entidade e com os mesmos fundamentos, quando sobre a mesma matéria e os mesmos requerentes só pode haver uma informação vinculativa.
Até hoje não se sabe por que motivo - e a pedido de quem - a AT decidiu alterar o seu entendimento. Esta mudança de entendimento relativamente ao IMI é também muito estranha. A diretora-geral da AT até terá começado por informar na Assembleia da República que resultou da jurisprudência dos tribunais arbitrais, mas essa afirmação foi por duas vezes desmentida pelo Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa sem contraditório posterior, pelo que a diretora geral da AT terá, aparentemente, mentido ao Parlamento. Soube-se, recentemente, que essa mudança de entendimento ocorreu na sequência de uma reunião em que a diretora geral da AT afirmou ter ouvido as pretensões da EDP neste domínio. Não se sabe mais nada a este respeito até hoje.
A diretora-geral da AT acabou por não cumprir o despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF), de 3 de fevereiro de 2023, ordenando-lhe a liquidação e a cobrança do IMI sobre os imóveis das barragens. Foi preciso um segundo despachodo SEAF com o mesmo fim, datado de 16 de agosto, para que a diretora-geral da AT desse início ao cumprimento das instruções, o que apenas aconteceu em setembro último, mas os procedimentos seguidos foram aparentemente feridos de erro, com a emissão de instruções ilegais acerca das avaliações das barragens. Estas instruções ilegais conduzirão também à ilegalidade das liquidações do IMI e repetem os mesmos erros que a AT tem vindo a praticar relativamente às centrais eólicas e fotovoltaicas, o que tem sido muito útil para a EDP e restantes concessionárias, que assim se têm furtado ao pagamento do IMI sobre esses empreendimentos energéticos. A mesma diretora-geral que, a confirmar-se, será responsável pela caducidade do direito à liquidação do IMI de 2019, por não ter dado cumprimento ao despacho do SEAF de 3 de fevereiro.
E a Direção-Geral do Tesouro e Finanças? A DGTP não tratou de avaliar, como lhe competia, os interesses financeiros do Estado no negócio das barragens, nomeadamente as vantagens ou desvantagens do exercício do direito de preferência que a lei estabelece a favor do Estado e também a exigência da atualização, pelos valores de mercado, do valor recebido pelo Estado em 2007, por ocasião da prorrogação dos prazos de concessão das barragens. Quando solicitada para cumprir a sua missão nestes domínios, a DGTF informou que não tinha funcionários qualificados nem tempo suficiente para apreciar estes relevantes interesses do Estado, que assim foi gravemente prejudicado.
Na mesma linha, a Parpública - a sociedade gestora das participações sociais do Estado -, quando foi solicitada para analisar os mesmos interesses que anteriormente referimos relativamente à DGTF, informou o mesmo, ou seja, que não tinha funcionários qualificados nem tempo suficiente para analisar as questões.
O que é estranho é que estas duas entidades não trataram de solicitar mais tempo para fazerem a análise que lhes competia fazer, tendo-se submetido ao interesse da EDP de realizar o negócio ainda no decurso do ano 2020 porque isso era essencial para apresentação de resultados desse ano.
Finalmente, vejamos a atuação do Governo, que tutela as várias entidades públicas mencionadas.
- Primeiro, ignorou os avisos dos cidadãos da Terra de Miranda para a probabilidade de o negócio das barragens ser uma "mistificação" destinada a não pagar impostos.
- Segundo, violou o compromisso assumido com o Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM) de trabalhar em conjunto na definição do Interesse Público aplicável ao negócio, ignorando pedidos de reunião e de contacto estabelecidos nesse sentido.
- Terceiro, autorizou o negócio contra o entendimento dos seus serviços técnicos.
- Quarto, desprezou os interesses patrimoniais e financeiros do Estado no negócio, não analisando sequer as vantagens do exercício do direito de preferência que ele estabelece a seu favor, nem tratou de cuidar de repor justiça no valor da prorrogação dos contratos de concessão, feitos pelo então Ministro da Economia, Manuel Pinho, em 2007, como já referido.
- Quinto, promoveu uma alteração legislativa ao artigo 60.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), em resultado da qual todo o negócio ficaria isento do Imposto do Selo, no pressuposto de que se tratou de uma reestruturação empresarial - esta alteração "assenta como uma luva" ao negócio.
- Sexto, permitiu que a diretora-geral da AT tivesse mudado a doutrina administrativa aplicável ao negócio de modo a garantir que não fosse exigido qualquer imposto.
- Sétimo, assistiu passivamente à recusa da diretora-geral da AT em cumprir dois despachos do membro do Governo que a tutela, desautorizando-o publicamente desse modo, e mantendo-a em funções.
- Oitavo, quando todo o país se apercebeu de que o maior negócio do século tinha sido feito sem o pagamento de impostos, o Governo enviou uma delegação a Miranda do Douro, 10 dias depois da realização da operação, a anunciar oficialmente que nenhum imposto era devido. E, para que não existissem dúvidas, ao lado do Ministro do Ambiente, que falou em nome do Governo, estava o então SEAF. Já vimos acima que essa delegação foi desautorizada pelo atual SEAF, que mandou liquidar o IMI sobre as barragens e, portanto, também o IMT. E pelo próprio DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) - órgão do Ministério Público, independente do poder executivo, ao contrário das entidades públicas já referidas -, que abriu inquérito crime por fraude fiscal qualificada.
Essa deslocação e esta declaração levantam muitas interrogações, nomeadamente:
Qual o interesse público que justificou esta vinda da delegação do Governo a Miranda? Quem mandou a Miranda do Douro esta delegação governamental, representando dois ministérios, o do Ambiente e o das Finanças? Nenhum destes senhores tira consequências do facto de terem sido desautorizados pelo atual SEAF? Estaria essa visita ligada à alteração legislativa ao artigo 60.º do EBF e à ação duvidosa de toda a administração pública neste negócio? Por que motivo, no dia seguinte, foi efetuada uma comunicação pela AT determinando a abertura de um inquérito disciplinar ao membro do MCTM que passou declarações à comunicação social por ocasião daquela visita? E quem determinou a abertura desse inquérito, e com que fins?
O comportamento de todos os intervenientes públicos no negócio das barragens é, todo ele, estranho, mas também, aparentemente, indiciador de graves desvios do Interesse Público por entidades que têm por missão prossegui-lo.
A ação uniforme do Governo e dos órgãos da administração pública que tutela prejudicou as populações da Terra de Miranda, bem como os portugueses em geral, pelo que o esclarecimento de todos os factos é indispensável para a boa saúde da Democracia.
Da parte dos cidadãos da Terra Miranda, a luta pelos interesses das populações e pela prossecução do Interesse Público continua, pelo que não desistirão de exigir que se respeite a região, reclamando: a criação do Fundo resultante das receitas do negócio das barragens que, segundo a lei, deveria ter ocorrido até junho de 2021;a criação doInstituto Público do Mirandês que, de acordo com a lei do Orçamento do Estado de 2023, deveria ter acontecido até final deste ano; atribuição, aos municípios, de 7,5% das receitas do IVA da venda de energia elétrica produzida pelas barragens, bem como o IMI das barragens enquanto a administração tributária não proceder à sua cobrança.
Todas estas obrigações estão estabelecidas em lei, mas o Governo que agora cessa funções decidiu, como já referido, não as cumprir. Trata-se de obrigações legais e, acima de tudo, de respeito por um povo e uma região, e pelo País.