José António Moreira, Expresso online

A política ambiental surge desligada de qualquer pensamento sobre as vidas dos cidadãos, o que é meio caminho andado para não produzir os efeitos desejados. Aguarda-se o dia em que as autoridades, sem colocarem em causa as “contas certas”, olhem para o ambiente e essas vidas de um modo verdadeiramente integrado e construtivo, mesmo que isso possa significar uma menor arrecadação de receita. Será o dia em que a racionalidade prevalecerá

A proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) para o ano de 2024 contém uma norma (que o PS anunciou entretanto que ia retirar) que contempla o regular aumento, nos próximos anos, do Imposto Único de Circulação (IUC), o denominado “selo do carro”, das viaturas mais antigas.

Já muito se disse e escreveu sobre essa norma, nomeadamente sobre os respetivos efeitos sociais, ao tributar os mais desfavorecidos, aqueles cujos recursos não lhes permitem possuir viaturas mais recentes. O governo, na mais recente justificação de tal medida, referiu que ela pretendia condicionar a utilização de tais viaturas, supostamente mais poluidoras, no âmbito da política de melhoria do ambiente.

Mesmo usando de imaginação, não se consegue percecionar qual o efeito que tal medida teria sobre a redução da poluição ambiental. Não se afigura plausível que quem não tem atualmente condições para trocar de viatura, por uma mais recente, o fosse fazer depois do aumento do IUC; nem que quem passasse a pagar mais IUC deixasse de a utilizar, ou passasse a utilizá-la em menor grau. Ou seja, não se vê, pelo prisma ambiental, como é que o aumento do IUC pode trazer benefícios.

Conclui-se, sim, que se tratava de uma medida fiscal de arrecadação de receita, embrulhada numa narrativa de preocupações ambientais, assunto a que a generalidade dos cidadãos é sensível. Aliás, quando as linhas gerais do OGE foram inicialmente conhecidas o aumento desse imposto foi apresentado como a contrapartida de receita que era necessária para compensar a perda que advinha da redução de portagens em algumas autoestradas do interior do país.

A contestação à medida atingiu nível que poucas vezes se vê em Portugal.

Porém, este caso, de modo particular a ligação que o governo fez entre os veículos de transporte e a poluição ambiental, poderia ser utilizado para se iniciar uma reflexão nacional sobre o que se poderia (deveria) fazer para, com as infraestruturas existentes, se minorar a poluição ambiental e aumentar a produtividade de quem utiliza uma viatura para se deslocar, de modo particular quem conduz viaturas pesadas.

Um exemplo. Considere-se um pesado de mercadorias que se desloca de Braga em direção a Lisboa. Chega ao Porto na A3, atravessa a cidade utilizando a Via de Cintura Interna, cruza o rio Douro na Ponte do Freixo ou na Ponte da Arrábida, para prosseguir na A1. São muitas centenas destas viaturas que diariamente cruzam a cidade do Porto, em ambas as direções, provocando enormes congestionamentos de trânsito a todas as horas do dia, de modo particular nas horas de ponta. Quanta poluição atmosférica é gerada, quantas horas de trabalho ou de lazer são perdidas em cada dia …

Porém, existe uma via circular externa, a Circular Regional Exterior do Porto (CREP), inaugurada em 1 de abril de 2011. Nessa altura, sob o título “Inaugurada circular externa do Porto”, a TSF referia no seu sítio na internet que “O porta-voz da Auto-estradas do Douro, Franco Caruso, sublinhou que esta via vai diminuir o tráfego no centro do Porto e apresentou as ligações feitas pela nova autoestrada, bem como os seus custos.”.

A expetativa não se concretizou, a CREP continua, em parte substancial do seu percurso, a ser mais uma via do tipo “lá vem um”, com reduzidos níveis de tráfico, de modo particular de pesados. Compreende-se que assim seja, dado que um veículo da classe 4, saindo da A3 na Maia e percorrendo a CREP para entrar na A1 nos Carvalhos, terá de pagar mais de 14 euros de portagens, por oposição a menos de 2 euros se atravessar a cidade do Porto.

Este é um problema que, julga-se, ocorre em muitos outros locais do país. Tem-se uma infraestrutura subaproveitada, no caso a CREP; continua-se, por causa dos engarrafamentos de trânsito, a poluir sem proveito, a gastar horas de trabalho (ou de descanso) dos condutores sem contributo para a produtividade; as autoridades, via concessionários, prosseguem focadas no tributo. Tudo porque os justificados e meritórios propósitos políticos de despoluir e de aumentar a produtividade nacional caem cerce quando o objetivo primeiro é a arrecadação de receita.

Neste contexto, a política ambiental surge desligada de qualquer pensamento sobre as vidas dos cidadãos, o que é meio caminho andado para não produzir os efeitos desejados. Serve, é certo, como no caso do referido aumento do IUC, para justificar arrecadação de receita fiscal.

Aguarda-se o dia em que as autoridades, sem colocarem em causa as “contas certas”, olhem para o ambiente e essas vidas de um modo verdadeiramente integrado e construtivo, mesmo que isso possa significar uma menor arrecadação de receita. Será o dia em que a racionalidade prevalecerá.