Manuel Castelo Branco, OBEGEF

Vejo a comparação com a Roménia como menos problemática do que a comparação com a Irlanda, uma vez que este país é por muitos considerado um refúgio fiscal e isso tem implicações muito importantes em termos de comparações com outros países

Nos últimos meses muito se tem falado e escrito sobre a questão dos impostos. A proposta do PSD para reduzir impostos foi um dos temas mais abordados, mas também se discutiram assuntos como a eventual relação entre o facto de a Roménia ter eventualmente ultrapassado Portugal em termos de “nível de vida” com diferenças em termos de carga fiscal. Relativamente a este assunto, ficámos a saber nos últimos dias que, em 2022, a carga fiscal em Portugal foi de 38% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo da média europeia (41,2%), mas bastante acima da carga fiscal de países como a Irlanda (21,7%) ou a Roménia (27,5%). Comparações entre Portugal e a Roménia ou a Irlanda têm sido recorrentemente efetuadas, frequentemente para prossecução de objetivos de natureza política. Já em maio do ano passado foram amplamente comentadas as previsões da Comissão Europeia de que o PIB per capita em paridades de poder de compra da Roménia deveria ultrapassar o de Portugal em 2024. Em alguns dos mais relevantes meios de comunicação social (Expresso, Visão, etc.) foi possível ler notícias associando esta alteração a mudanças em termos de desenvolvimento económico, em vez de crescimento económico, que é o que está em causa. Comparações entre Portugal e Irlanda são mais antigas, mas os focos são os mesmos, diferenças em termos de crescimento económico e carga fiscal. No caso do PIB per capita expresso em paridades de poder de compra relativo a 2022, a Roménia e Portugal apresentam valores semelhantes (77% da média da União Europeia), mas a Irlanda apresenta um valor que desafia a compreensão, 233% da média da União Europeia (só superado pelo do Luxemburgo).

Embora ache pouco provável que a eventual ultrapassagem de Portugal pela Roménia em termos de “nível de vida” se deva a diferenças na evolução da carga fiscal, parece-me relevante chamar a atenção para uma outra questão, a qual tem sido menos abordada nas discussões que têm sido feitas sobre o assunto dos impostos em Portugal. Trata-se da questão da evasão e elisão fiscal. De acordo com a informação disponibilizada pela Tax Justice Network, organização não governamental que completou este ano 20 anos de existência e cuja missão, tal como apresentada na sua página web, é contribuir para a criação de condições para obter justiça fiscal através da contestação de falsas narrativas e da normalização de propostas ousadas e progressistas, Portugal encontra-se relativamente bem posicionado nos rankings Corporate Tax Haven Index e Financial Secrecy Index, por ela elaborados. Sendo o primeiro lugar nesses rankings ocupado pelo pior caso, Portugal aparece relativamente bem posicionado, em 50.º lugar no primeiro e 57.º no segundo. Relativamente a Portugal, a Roménia aparece mais mal posicionada no primeiro (em 41.º lugar), mas mais bem posicionada no segundo (em 62.º lugar). Parecem não existir grandes diferenças a este nível entre Portugal e Roménia.

Embora considere que comparações entre países devem ser efetuadas com extremo cuidado, tendo em conta múltiplos aspetos, devo confessar que vejo a comparação de Portugal com a Roménia como menos problemática do que a comparação de Portugal com a Irlanda. Este último país é por muitos considerado um refúgio fiscal e isso tem implicações muito importantes em termos de comparações com outros países. Nos dois rankings elaborados pela Tax Justice Network, a Irlanda aparece muito pior posicionada do que Portugal (11.º lugar no Corporate Tax Haven Index e 27.º no Financial Secrecy Index). A Tax Justice Network estima em cerca de 20 mil milhões de dólares as perdas fiscais infligidas pela Irlanda a outros países através da facilitação de abusos fiscais. Já no caso de Portugal, essas perdas são estimadas em apenas cerca de 382 milhões e no caso da Roménia em zero.

A Irlanda é apresentada como um refúgio fiscal no relatório Global Tax Evasion Report 2024 do EU Tax Observatory, um laboratório de investigação independente, sediado na Paris School of Economics e cofinanciado pela União Europeia. Neste relatório, na sua página 48, dá-se conta da explosão ocorrida, desde 2015, nas receitas fiscais da Irlanda relativas ao imposto sobre as empresas. Em 2022, como se afirma neste relatório, “apesar das suas reduzidas taxas, a Irlanda coletou o equivalente a 4500 euros por habitante, quase cinco vezes mais do que a França ou a Alemanha, que têm taxas de imposto sobre o rendimento das empresas bastante mais elevadas”. Embora algum daquele crescimento possa refletir “a relocalização de atividades reais”, uma grande parte dele “provavelmente reflete o aumento da transferência de lucros para a Irlanda” (p. 48). Outra referência interessante referida neste relatório é o do a Microsoft parecer relativamente pouco lucrativa na Alemanha porque é anormalmente lucrativa na Irlanda (p. 38).

Num artigo publicado em 2017 no The New York Times com o título “Leprechaun Economics and Neo-Lafferism”, o economista Paul Krugman, recipiente, em 2008, do Prémio em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobeldo Sveriges Riksbank (prémioincorreta e frequentemente designado por Nobelda Economia), chamou a atenção para o facto de a Irlanda ser um país em que o PIB excedia largamente o Rendimento Nacional, explicando isto através da reduzida taxa de imposto sobre as empresas. De acordo com este economista, isto permitia atrair investimento estrangeiro em setores intensivos em capital, que qualificou de “investimento que faz aumentar o PIB, mas pouco faz pelos trabalhadores”. Isto permitia ainda “criar um incentivo para utilizar preços de transferência para fazer lucros aparecerem na Irlanda, apesar de não terem muito a ver com atividade irlandesa”.

As dificuldades de comparação da Irlanda com outros países com base em indicadores como o PIB são reconhecidas num interessante documento publicado pelo Banco Central da Irlanda, com o sugestivo título “Is Ireland really the most prosperous country in Europe?” (Será a Irlanda mesmo o país mais próspero na Europa?), escrito por Patrick Honohan, governador deste banco entre 2009 e 2015. Neste documento, afirma-se claramente que quem segue a economia irlandesa “encontra-se bem ciente de que o PIB enquanto medida de bem-estar económico sofre de sérios problemas, especialmente devido às atividades das multinacionais” (p. 2). Relativamente a 2020, a aparente força da economia irlandesa deve-se, “em grande medida”, ao “crescimento continuado nas exportações” dos setores farmacêutico e das tecnologias de informação “gerados por empresas multinacionais” e “mascara o abrupto colapso no emprego e na atividade económica na maioria dos setores” (p. 2).

Honohan sugere que, em alternativa ao PIB per capita, se use um outro indicador para comparar os “níveis de vida” das famílias de diferentes países: a Despesa de Consumo Individual per capita. Este indicador apresenta uma imagem menos enviesada da situação da Irlanda em termos de “nível de vida” das suas famílias. Utilizando os dados mais recentes disponibilizados pelo Eurostat, relativos a 2022, a Despesa de Consumo Individual per capita na Irlanda é de 87% da média da União Europeia. De acordo com estes dados, verifica-se também que as diferenças no “nível de vida” entre Irlanda, Portugal (85% da média da União Europeia) e Roménia (88% da média União Europeia) são pouco significativas, ao contrário do que a comparação dos respetivos valores do PIB per capita parece sugerir.

Conforme o leitor poderá ter reparado, neste texto, “nível de vida” aparece sempre entre aspas e a referência a diferenças em termos de “nível de vida” entre países aparece precedida pela palavra “eventual”. Tal deve-se ao facto de muitos especialistas considerem que indicadores como o PIB per capita não podem ser usados para avaliar conceitos como “nível de vida”, “qualidade de vida” ou até “desenvolvimento económico”. Uma das suas muitas fragilidades, da qual também padece o indicador da Despesa de Consumo Individual per capita, tem a ver com o ser um valor médio. A este propósito, Uwe Reinhardt, um reputado economista, infelizmente já falecido, num texto sobre o que significaria o “crescimento económico” para os americanos, coloca a seguinte questão: se selecionarmos cuidadosamente duas amostras de pessoas e colocarmos uma delas num forno quente e outra em gelo seco, podemos afirmar que, em média, elas estão confortáveis?