Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
Está a aproximar-se a data-limite de 10 de outubro para apresentação da Proposta de Orçamento de Estado de 2024 (OE 24) no Parlamento, que geralmente é entregue na última hora, o que é, em si mesmo, um facto interessante para análise.
Tratando-se de um conjunto de elementos com muita informação e análise, que se deseja com a profundidade e rigor necessários - tal nem sempre acontece, pois muitas vezes o relatório orçamental está incompleto ou tem gralhas -, já se percebe que requer muito trabalho e a articulação das áreas governamentais, sob a liderança da equipa do Ministério das Finanças.
O trabalho do designado ciclo orçamental inicia-se em fevereiro, com a preparação do Quadro Plurianual das Despesas Públicas (QPDP), que visa estabelecer os limites orçamentais para as políticas a implementar no médio prazo. Segue-se, em abril, a apresentação do Programa de Estabilidade, que contém previsões económicas de crescimento económico e das variáveis orçamentais a quatro anos.
Em outubro, como referido, o Governo entregará à Assembleia da República a Proposta de Lei do OE 24 - acompanhada dos mapas da lei e do relatório orçamental, que contém o cenário macroeconómico, as principais medidas previstas e quadros orçamentais com a análise respetiva -, que deverá refletir o QPDP e ser consonante com as Grandes Opções do Plano (medidas de política e investimentos congruentes) entregues na mesma altura.
Em novembro inicia-se a apresentação e discussão da Proposta de Lei, que terá de ser aprovada na Assembleia da República num prazo de 45 dias desde a entrega.
Na proposta poderão ainda ser acolhidas, a priori, sugestões dos mais variados setores da sociedade civil, designados de lobbies ou grupos de pressão, mas destaca-se sobretudo as dos parceiros sociais, ou seja, os representantes dos trabalhadores (confederações sindicais) e dos empregadores (confederações patronais), os quais serão abordados mais à frente.
Contudo, tal não deveria servir de desculpa para a apresentação da proposta de OE 24 "à ultima da hora", pois há oito meses de preparação, como se depreende, e é suposto um qualquer governo ter uma estratégia integrada, inscrita no Programa de Governo (que deverá verter o programa eleitoral sufragado pelo povo), e tomar as medidas de fundo, de caráter mais estrutural - geralmente as mais difíceis, mas que produzem mais resultados a longo prazo, em particular o reforço do potencial de crescimento económico - logo nos primeiros anos, pelo que nos anos seguintes bastariam correções de rumo pontuais, em função da conjuntura.
Recordo que (i) o governo atual tem maioria absoluta, pelo que conseguirá sempre aprovar o OE 2024, a questão é saber se acata propostas relevantes da sociedade civil (a priori) e de outros partidos (geralmente em sede de especialidade, após a aprovação do orçamento na generalidade), numa postura dialogante e construtiva; e (ii) irá apresentar o terceiro orçamento da presente legislatura, pelo que, supostamente, as medidas de fundo já teriam sido tomadas (assim o quisesse, até porque tem maioria absoluta) e as novas medidas a apresentar seriam pontuais em resposta a alterações de contexto.
Ou seja, em princípio o Governo teria todas as condições para apresentar este ano a Proposta de Orçamento antes de dia 10, tendo os principais lobbies já apresentado as suas propostas, o que daria tempo para a eventual incorporação de algumas inseridas na estratégia pré-existente.
Estou em crer que não o irá fazer, voltando a "esticar a corda" até ao limite.
Isto porque 2024 é um ano de eleições europeias e há que apresentar medidas que, pelo menos, pareçam tão boas como as propostas pelos demais partidos, faz parte do jogo político e o Governo tem-se multiplicado em anúncios de medidas, recentemente. Infelizmente, muitas vezes basta as propostas "parecerem" melhores, pois o marketing também joga muito nestas matérias e a complexidade de algumas propostas dificulta a perceção dos eleitores.
Naturalmente, medidas de "última hora" obrigam a ajustamentos nas várias peças orçamentais, empurrando a entrega do orçamento para a "25.ª hora". Nunca tivemos uma greve conhecida da equipa das Finanças ligada ao Orçamento de Estado, mas possivelmente teriam razões para isso.
Acontece que esta abordagem constitui a continuação do que temos visto nos últimos anos, uma profusão de medidas reativas de caráter assistencialista, não medidas de fundo que, embora demorando tempo a produzir efeito, são as que resolvam efetivamente, a prazo, os problemas da economia portuguesa, que radicam, sobretudo, numa gritante falta de competitividade nas suas várias dimensões, penalizando a quantidade e qualidade dos fatores produtivos (trabalho e capital), bem como o modo como são combinados (gestão/ organização).
Tal leva a um baixo crescimento económico potencial, uma reduzida produtividade e, por fim, um baixo nível de vida no contexto europeu, sendo Portugal sucessivamente ultrapassado por países que eram mais pobres que nós há poucos anos.
Pegando numa analogia automóvel, é como ter no carro um pneu já velho que furou, abrandando muito o andamento do veículo, e ir colocando remendos que apenas minoram temporariamente o problema, quando a solução duradoura é substituir por um pneu novo.
A redução da carga fiscal, sobretudo sobre as famílias e os jovens, tem sido muito debatida antes da apresentação da proposta de orçamento, depois do conjunto de medidas apresentadas pelo PSD nesse sentido, inseridas como um primeiro passo de uma reforma fiscal mais abrangente, ainda em preparação. A iniciativa já teve o mérito de levar o Governo a apresentar medidas no mesmo sentido, mas que, até ver, têm um impacto bastante inferior às apresentadas pelo PSD.
Mais uma vez, são medidas apresentadas de forma reativa e avulsa (no contexto de política partidária), não resultando de uma desejada estratégia integrada visando a resolução de problemas estruturais, neste caso a falta de competitividade fiscal, como se mostra abaixo.
Lembro que a carga fiscal sobre a economia atingiu um máximo de 36,4% do PIB em 2022, traduzindo-se, após relativização pelo nível de vida face à UE (enquanto medida da capacidade de pagamento de cada país), no 5.º esforço fiscal mais alto da União, 17% acima da média.
Ora o que o Governo previa no Programa de Estabilidade 2023-27 de abril (PE) - com projeções económicas e orçamentais que, em princípio, deveriam emergir de opções estratégicas - era uma redução da carga fiscal para 35,1% do PIB em 2027 (segundo o Conselho de Finanças Públicas), valor quase em linha com o de 2021 (35,3%, segundo o INE), antes da alta inflação.
Tal significa que o Governo praticamente se limitava a devolver, ao longo de quatro anos, o acréscimo de receita fiscal que teve por conta da inflação elevada nos anos mais recentes, sem ter em conta que, em 2021, a carga fiscal estava também num máximo fiscal e o esforço fiscal era já muito alto (115,2%, o 6º valor mais alto da UE). Isto demonstra que não havia qualquer estratégia de resolução do problema de falta de competitividade fiscal subjacente ao PE.
Com efeito, a redução da carga fiscal, se for duradoura, pode melhorar estruturalmente a competitividade na vertente fiscal, sendo ainda adequada à atual conjuntura de enorme dificuldade com que se defrontam as empresas e, sobretudo, as famílias, devido à inflação ainda elevada e ao nível já historicamente elevado das taxas de juro, que estão a provocar uma forte desaceleração do PIB na UE, na Área Euro - cuja previsão de crescimento foi reduzida para 1,1% nos números recentes da OCDE e 1,3% nos da Comissão Europeia - e em Portugal.
Quanto mais não seja, a devolução de parte do grande excesso de receita face ao orçamentado em 2023 - devido à forte subida das receitas fiscais face à pressão inflacionista - é um imperativo moral face às dificuldades da população, e foi nesse contexto que o PSD propôs que as suas medidas de redução de IRS fossem aplicadas já em 2023, num contexto de emergência social.
O Governo apenas admite discutir a redução do IRS em sede de OE 2024, falta agora saber qual o grau de ambição na redução da carga fiscal, a começar pelo IRS.
A CIP, uma das confederações patronais, apresentou recentemente ao governo, na sequência do "diálogo (...) com representantes sindicais", "um ambicioso Pacto Social capaz de responder (...) aos problemas imediatos que os portugueses enfrentam, mas também dar um passo decisivo na resolução de obstáculos estruturais que prejudicam o desenvolvimento do país nos mais diferentes domínios. O Pacto Social tem três pilares: crescimento, rendimento e simplificação".
Contudo, o documento não é do domínio público e apenas se conhecem pela comunicação social algumas das medidas, várias das quais vão no sentido do desagravamento de impostos e contribuições sobre os rendimentos do trabalho e do capital.
Considero positiva a inserção de medidas de desagravamento fiscal e alguma articulação prévia com os sindicatos, mas extremamente negativo que o documento não seja do domínio público (ao contrário do que costuma acontecer com as iniciativas da CIP) para poder ser apreciado pela generalidade dos cidadãos, os supostos beneficiários finais da iniciativa, dificultando a análise das medidas que serão acolhidas ou não pelo Governo. Por outro lado, mesmo admitindo por hipótese académica que a CIP tenha apresentado uma estratégia integrada "chave na mão" para a resolução dos problemas estruturais do País, o mais provável é que o Governo acolha apenas as medidas mais fáceis de incorporar no Orçamento já preparado, sem grande custo fiscal nem grande "dor" nalgum grupo eleitoral relevante, até porque se aproximam eleições. Ou seja, não se espera que nenhuma reforma verdadeiramente estruturante, a existir, seja acolhida.
Quanto à reação já conhecida do Governo, apenas se sabe que o Ministro das Finanças se mostrou aberto a discutir "todas as propostas" apresentadas por patrões e sindicatos para o OE 2024, mas deixou claro que não quer pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social, pelo que não haverá redução das contribuições sociais.
Assim, a expectativa para a Proposta de OE 2024 é um pouco mais do mesmo, um sortido de medidas coloridas, reativas e avulsas - sem uma estratégia integrada e estruturante por detrás -, visando cobrir um espectro alargado de eleitores, mas que não irá mudar nada de fundo, até porque, geralmente, o que o Governo tem "dado com uma mão" tem depois "tirado com a outra", de forma bem disfarçada (designada de "anestesia fiscal").