Rute Serra, Expresso online

Nos últimos tempos recrudesceu o debate internacional em torno das vantagens e desvantagens da criação de um tribunal internacional anticorrupção. Conseguimos até alcançar a oportunidade do momentum: atente-se nas afirmações de Gordon Brown (antigo primeiro-ministro do Reino Unido) ao The Times, em março de 2022: “Os crimes de Vladimir Putin são tão hediondos, ultrajantes e extensos que deveríamos agora considerar como levá-lo à justiça não só pelos seus crimes de agressão contra a Ucrânia e pelo seu contínuo reinado de terror, mas pelas suas três décadas de engano e corrupção […] A cada dia que Putin continua no poder, cresce a defesa de um Tribunal Internacional Anticorrupção.”

Sobre uma ideia que começou a gerar-se em 2014, o recente catalisador da criação de um tribunal internacional dedicado à grande corrupção (frequentemente um crime transnacional) foi proposto pela Integrity Initiatives International, organização que em junho de 2021 divulgou uma declaração de apoio à institucionalização deste tribunal, subscrita atualmente por 250 líderes mundiais, incluindo um total de 39 chefes de estado e 32 laureados com o Prémio Nobel, de mais de 70 países.

O racional apresentado é glorioso: constata-se que “a grande corrupção – o abuso de cargos públicos para ganhos privados por parte dos líderes de uma nação (cleptocratas) – é uma grande barreira para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, responder eficazmente às pandemias, combater as alterações climáticas e as crises ecológicas conexas, diminuir as crises de refugiados, promover e manter a democracia e os direitos humanos, estabelecer a paz e a segurança internacionais e garantir uma ordem global mais justa e baseada em regras. Portanto, não é um crime sem vítimas. Pelo contrário, tem consequências humanas e ecológicas devastadoras.”

Mais recentemente, em agosto de 2023, um grupo internacional de proeminentes juristas reuniu-se no The New Institute para redigir a primeira versão de um tratado para a criação do tribunal internacional anticorrupção. Primeiros passos vistos como positivos, mas que se querem lestos e seguros, para garantir empoderamento sobre a questão.

Importa referir que a ideia de criação deste tribunal, não nasce de lacunas legislativas e instrumentais de prevenção e combate à corrupção, mas antes da ineficácia que o ecossistema apresenta. O argumento de que este tribunal deteria competência para processar, para além de chefes de estado e de governo, funcionários públicos e qualquer pessoa que, consciente e intencionalmente, intervenha na prática de um crime, é convincente. Desde que (alguns ou todos) os elementos do crime tivessem sido cometidos por nacionais de um Estado-Membro do tribunal ou no território de um Estado-Membro – condicionante que alimenta os críticos à institucionalização deste tipo de tribunal. Será de evitar criar tigres sem dentes.

Parece evidente a muito provável incapacidade de submeter à jurisdição do tribunal os cleptocratas encartados, os quais, no entanto, sabemos que conspiram rotineiramente com facilitadores para utilizar os sistemas financeiros internacionais para branquear os rendimentos da sua conduta corrupta e realocá-los como ativos em destinos estrangeiros apelativos, camuflando a real propriedade desses ativos. Assim, se os países que abrigam centros financeiros internacionais aderirem ao tribunal, permitindo a apreensão de ativos provenientes de fundos ilícitos, o cerco aos cleptocratas apertar-se-ia. Não olvidemos, porém, que esta iniciativa se desenvolve num mundo que constata o retrocesso da democracia, a diminuição do espaço cívico e o declínio da proteção dos direitos humanos.

A obtenção de prova pelo tribunal revela-se um desafio exigente, mas não intransponível, visto muita daquela poder localizar-se, frequentemente, nos países governados pelos cleptocratas. Entidades internacionais como o International Anti-Corruption Coordination Centre ou a iniciativa conjunta do Banco Mundial e da United Nations Office of Drugs and Crime (UNODC) denominada Stolen Asset Recovery Assistance (StAR), criada há já quinze anos, e até o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (relembro os Pandora e Panama Papers), entre outras, serão fundamentais para este desiderato.

Medidas de transparência, ao nível da criação sistemática de registos de beneficiários efetivos acessíveis ao público ou da disponibilização pública de informação relativa à contratação pública são fundamentais para expor práticas corruptivas ilícitas. Mas não, contudo, um fim em si mesmas. No limite, podem até contribuir para a descrença pública na eficácia da punibilidade dos prevaricadores.

O direito a uma sociedade livre de corrupção é um direito humano fundamental. Se há, desde já, contributo de relevo que a discussão de instalação deste tribunal traz é o de focar as atenções internacionais para o problema da grande corrupção e uma consciencialização coletiva sobre a possibilidade de inovações complementares anticorrupção.