Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

No último dia de agosto, o Governo apresentou o desenho final do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), reprogramado, passando a dotação máxima de 16,6 mil milhões para 22,2 mil milhões de euros (+34%).

Do acréscimo de 5,6 mil milhões de euros, "cerca de 2,4 mil milhões correspondem a subvenções e 3,2 mil milhões de euros dizem respeito a empréstimos cujo objetivo é dar resposta ao incremento de custos provocado pela atual conjuntura económica e aumentar a ambição de medidas já em curso, nomeadamente no que diz respeito ao reforço do Programa Agendas Mobilizadoras".

O reforço do Programa Agendas Mobilizadoras, que envolve empresas e a Academia, resulta da procura muito acima do esperado pelo Governo dos instrumentos desse programa, que no geral se afigura positivo, dado o potencial de valorização económica do conhecimento, onde Portugal pontua mal nos sucessivos relatórios de inovação da Comissão Europeia.

Numa análise mais objetiva, a existência do Pograma é positiva em si mesma, por obrigar ao estabelecimento de canais de comunicação entre empresas e entidades do SCTN (Sistema Científico e Tecnológico Nacional), tendo de apresentar candidaturas conjuntas e cumprir os requisitos previstos. Contudo, subsistem dúvidas se muitos dos projetos apresentados não conterão, em grande medida, atividades que já estavam previstas - tanto do lado das empresas como do lado do SCTN -, caso em que o investimento público apenas substituirá investimento privado, o que não deveria acontecer, mas é muito difícil de fiscalizar e avaliar, na realidade.

Se o aparente fraco efeito do PRR sobre o investimento empresarial persistir a prazo, esta poderá ser uma explicação plausível para esse fenómeno.

Seja como for, só mais tarde se poderá avaliar mais cabalmente o impacto do PRR no investimento total, pois para já, a execução que interessa, a dos pagamentos, já estava claramente atrasada antes do aumento de dotação com a reprogramação, numa altura em que já se passou um pouco mais de ano e meio dos cinco anos previstos de execução (até 2026), ou seja, um pouco mais do que 30% do prazo total de implementação. A execução medida em taxa de pagamento está, nesta altura, em metade dessa percentagem e irá baixar significativamente quando a comparação for feita com a dotação final mais elevada.

Até final de agosto só foram pagos 2 532 milhões de euros - representando 15% do total pré-reprogramação de 16 644 M€ -, dos quais 874 M€ a beneficiários diretos, ou 20% da dotação (de 4 359 M€), e 1 658 M€ a beneficiários finais, ou 13% da dotação (de 12 258 M€), atribuída aos beneficiários intermédios, que mais não são do que entidades públicas encarregues de selecionar os beneficiários finais, pelo que a fraca execução a este nível é claramente reveladora da ineficiência da máquina pública.

Para já, os efeitos do PRR no investimento total (público e privado) este ano, o segundo de execução - que já deveria, nesta altura, estar em "modo cruzeiro" - afiguram-se pífios mesmo que a conjuntura não ajude, nomeadamente pelo impacto da inflação no custo dos projetos.

No primeiro semestre, o investimento (medido pela Formação Bruta de Capital) caiu 2,6% em variação homóloga real. A queda deveu-se ao recuo dos stocks de produtos acabados, tendo a outra componente, a FBCF (Formação Bruta de Capital Fixo), registado uma subida, mas de apenas 0,6%, bem longe da subida anual de 3,6% prevista no Orçamento de Estado de 2023, dos 3,4% inscritos no Programa de Estabilidade 2023-27 de abril ou dos 3,1% previstos em junho tanto pelo Banco de Portugal (Boletim Económico) como pela OCDE (Economic Outlook). Por outro lado, a redução de existências, poderá revelar uma antecipação, pelas empresas, de uma menor procura nos tempos mais próximos.

Em 2022, o primeiro ano de execução, a FBCF cresceu 3,1% em termos reais, o que compara com uma previsão de 8,1% no Orçamento de Estado desse ano.

Centremo-nos agora especificamente na componente dos empréstimos do PRR, que têm taxas de financiamento muito inferiores às conseguidas pelo Governo (no fundo, porque a União Europeia tem um rating de dívida muito melhor do que o do Estado Português), para mais numa altura em que as taxas de juro estão bastante elevadas nos vários mercados, incluindo no mercado de dívida pública portuguesa.

Aparentemente, esteve em cima da mesa usar essas verbas para apoiar o financiamento das empresas, mitigando a falta de "músculo financeiro" para ombrear com países europeus, mais ricos, com maior margem orçamental, no âmbito do regime de auxílios de Estado integrado no plano industrial do Pacto Ecológico da União Europeia, que foi a resposta ao Inflation Reduction Act dos EUA de agosto de 2022, que prevê um amplo pacote de subsídios muito atrativo para empresas do setor das energias limpas, incluindo empresas europeias.

Vejamos o que dizia o Ministro das Finanças, Fernando Medina, em janeiro deste ano, no Ecofin.

"Só os países mais ricos terão capacidade financeira, só por si, para poder apoiar mais determinado tipo de indústrias e determinado tipo de atividades", replicando-se o sucedido com os subsídios excecionais autorizados na Europa desde o início da pandemia da covid-19, quando as duas maiores economias, Alemanha e França, representaram praticamente 80% das ajudas estatais concedidas. "E, por essa razão, sublinhamos que, neste desenho de resposta ao programa norte-americano, a discussão das mudanças de patamares nas ajudas de Estado tem de vir par a par com o financiamento. Isto é, nós não podemos só dizer "bom, agora podemos dar mais apoios à indústria e à economia", sem ter o que é um pacote de financiamento e verbas de financiamento que permitam estado de igualdade dentro do espaço europeu", disse.

O Governo chegou a ponderar a possibilidade de recorrer à totalidade dos 14,2 mil milhões disponibilizados nesta vertente a Portugal, conforme foi veiculado na comunicação social. A posição mais clara, mas não explícita, foi a indicação em abril (durante a visita oficial à Coreia do Sul), por parte do primeiro-ministro, António Costa, de que o montante de investimentos ao abrigo do novo regime europeu de auxílios estatais poderia chegar 11 mil milhões de euros, precisamente o montante dos empréstimos por usar do PRR.

Uns meses depois, a ideia começou a desvanecer até ser completamente posta de parte.

Em julho, Fernando Alfaiate, presidente da Estrutura de Missão Recuperar Portugal (responsável pela gestão e monitorização do PRR), alertava que usar a totalidade dos empréstimos podia atrasar a reprogramação.

No final de agosto, no comunicado oficial sobre a reprogramação do PRR, o Governo decidiu que, "face à avaliação das manifestações de interesse conhecidas de investimento estratégico para o país, ao seu estado de maturidade e calendários de implementação, e o calendário de execução do PRR até 2026, o Governo decidiu que não haverá acréscimo aos investimentos e reformas já em negociação com a Comissão Europeia".

Em alternativa, "o Governo irá criar um mecanismo contratual de investimentos estratégicos, explorando nomeadamente o atual quadro de auxílios de Estado integrado no plano industrial do Pacto Ecológico da União Europeia, que continua a ser trabalhado pelas áreas governativas da Economia e dos Negócios Estrangeiros e que visa responder às manifestações de interesse, designadamente em áreas como os microchips, indústria verde e mobilidade sustentável, cuja concretização ultrapassa o horizonte temporal do PRR".

Ou seja, aparentemente apenas há procura nestas áreas com um horizonte que ultrapassa 2026, o que é possível, mas pergunta-se se não seria possível conjugar empréstimos do PRR até esse ano, e depois recorrer ao regime contratual de investimento (figura que já existe) no novo mecanismo previsto, com vista a explorar o novo regime de auxílios de Estado, como é referido.

A não ser que tenha sido arranjada outra fonte de financiamento do investimento equiparável em montante (11 mil milhões de euros) e baixo custo, parece ter rapidamente desaparecido no seio do Governo a preocupação da desigualdade de utilização do novo regime de auxílios de Estado entre estados europeus mais ricos e menos ricos (caso de Portugal), pelo que se exige uma explicação mais cabal por parte do Executivo, que se parece contradizer em poucos meses numa matéria de investimento estruturante.

O timing da reprogramação e o aumento do endividamento com o recurso a empréstimos são fatores que devem ser pesados em face da potencial rentabilidade dos investimentos a atrair. Conviria haver uma maior transparência na decisão de não usar o remanescente dos empréstimos do PRR para efeito de investimento, bem como um maior detalhe do novo "mecanismo contratual de investimentos estratégicos" agora anunciado, nomeadamente as fontes de financiamento previstas, nacionais e (eventualmente) internacionais, de modo a poder ser feito um comparativo com os empréstimos do PRR.

Do acima exposto conclui-se que (i) o PRR está muito atrasado nos pagamentos, devido à ineficiência da máquina do Estado, que ainda por cima terá de executar, após a reprogramação, mais 34% da dotação inicial até 2026; (ii) o efeito no investimento, até ver, não parece ser significativo; (iii) poderá estar a verificar-se a substituição de investimento privado por público nas Agendas Mobilizadoras, a medida anunciada como a mais emblemática para as empresas e estruturante; (iii) o Governo aparentemente desistiu de tentar aproximar-se dos países europeus mais ricos na utilização do novo regime de auxílios de Estado da União Europeia.