José António Moreira, Público
Ao contrário da empresa, o casal não pode deduzir o que gastou com o salário da empregada doméstica, de cuja contratação dependeu também o rendimento que obteve.
A discussão sobre a redução da tributação dos rendimentos de trabalho (IRS) saltou para a ordem do dia. Já devia ter-se iniciado há muito, pois a carga fiscal sobre tais rendimentos, que se poderia aceitar transitoriamente num período de emergência nacional como foi o da “troika”, não é de concebível aceitação em período em que se deixou para trás a “austeridade” e se mantêm níveis de tributação que, mesmo para modestos rendimentos, raiam a extorsão fiscal.
Porém, há outras discussões que sobre o mesmo tema também devem ter lugar. Saliento a da eliminação da discriminação fiscal negativa das famílias empregadoras. Considerem-se as seguintes duas situações hipotéticas:
- A empresa E efetuou vendas de 50.000 euros no transato, tendo como única despesa os gastos suportados com um funcionário, que ascenderam a 14.000 euros. Em termos de tributação, simplificadamente, a matéria coletável será a diferença entre os referidos valores, 36.000 euros; a taxa de imposto 21%; o imposto a pagar 7.560 euros.
- A família F tem rendimento anual bruto (categoria A) de 50.000 euros. Como ambos os membros do casal trabalham, contrataram uma empregada doméstica para ajudar a tratar dos filhos e de um familiar doente, incorrendo numa despesa de 14.000 euros com os respetivos salários, encargos sociais e seguro. Em termos de tributação, apresentam declaração conjunta; o rendimento coletável é de 41.792 euros; a taxa de imposto é de 35% (com dedução de 2.565,20 por membro do casal); a coleta é de 9.496,8 euros, que corresponde ao imposto a pagar (não se deduziram a este valor os montantes respeitantes aos dependentes, nem às despesas do casal, para ser comparável com os valores apurados para a empresa).
A tributação da família é superior à da empresa em 25%, para o mesmo rendimento líquido. E isso deve-se, na quase totalidade, à impossibilidade de aquela deduzir, como gasto, o dispêndio com a empregada, o que contrasta com o tratamento fiscal dado à empresa. Porém, o que é criticável neste tratamento discriminatório não é o aplicado às empresas, mas sim o das famílias.
Nos termos do art.º 23º do Código do Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), “1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.” É inquestionável que assim deve ser, para permitir que apenas seja tributado o valor criado pela empresa. Por isso, no caso A. acima referido, ao rendimento bruto, que é o valor das vendas, é permitido deduzir todos os consumos (gastos) que a empresa teve de efetuar para o gerar.
Mas, então, por que não usar do mesmo critério relativamente às famílias e aos gastos que elas têm de suportar para gerarem o respetivo rendimento da categoria A? No caso B., para poder gerar o referido rendimento, que foi obtido pelos dois membros do casal, houve que contratar um trabalhador, a exemplo do que fez a empresa. A não existir tal contratação, aquele rendimento não teria sido gerado no referido montante. Basta considerar que, muito provavelmente, um dos membros do casal teria de ficar em casa para assegurar a execução do serviço que, no cenário descrito, é assegurado pela empregada. Há, pois, uma óbvia discriminação fiscal negativa, que penaliza de modo significativo as famílias empregadoras.
Tal discriminação pode ser ilustrada sob outros ângulos. A política de rendimentos do Governo, nos últimos anos, tem tido como uma das suas bases de sustentação o aumento sistemático do salário mínimo nacional (SMN), acima dos níveis de inflação verificados. Não se questiona a justiça de que esse referencial de remuneração seja aumentado. O que se questiona é o diferente tratamento que, também neste domínio, é dado às famílias. Enquanto, em sede de concertação social, foram negociadas contrapartidas fiscais a atribuir às empresas, para compensar, em grande parte, o acréscimo de gastos salariais que tal aumento do SMN para elas implicou, para as famílias nada foi pensado, muito menos atribuído, para as compensar. Não é isto discriminação negativa?
É-se levado a concluir que, no atual enquadramento fiscal, a contratação de pessoal do serviço doméstico por parte das famílias é considerada um luxo, um gasto desnecessário à obtenção do rendimento. Não é desnecessário. Elas contratam para, como no cenário B., poderem ter filhos sem que um dos membros tenha de abdicar da respetiva carreira profissional; ou para poderem cuidar dos seus idosos e acamados; ou, no caso de famílias constituídas por pessoas mais idosas, terem quem cuide de si, evitando sobrecarregar as instituições de apoio social de retaguarda.
Em suma, não é um luxo. Não há família que contrate um trabalhador doméstico só para disso se ufanar socialmente. Até porque é uma decisão que custa bem caro. Assumindo um contrato a tempo inteiro com remuneração igual ao SMN, contratar um trabalhador implica um gasto anual – para 11 meses de trabalho efetivo – que oscila entre 13.150 e 14.050 euros, consoante o regime (convencional ou efetivo) da Segurança Social escolhido, seguro de acidentes de trabalho e subsídio de alimentação incluídos.
Em 2022, segundo a Pordata, havia em Portugal mais de 475.000 entidades empregadoras de pessoal doméstico registadas na Segurança Social, que se assume serem, na quase totalidade, entidades familiares. Entidades que aguardam um olhar do Governo, com vista ao fim da discriminação fiscal negativa referida. O mínimo que se exige é que, no que respeita à geração dos rendimentos da categoria A e aos gastos com a contratação de pessoal doméstico, trate as famílias de modo idêntico ao que aplica às empresas.
A criminalização do trabalho não declarado, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, pode ser vista como uma primeiro passo no sentido desse tratamento equitativo que aqui se reclama. Espera-se, agora, que o Governo seja consistente, também, no que respeita à equidade na tributação.