Miguel Viegas, OBEGEF
O recurso crescente aos serviços de nuvem por parte do estado, das empresas privadas e dos cidadãos levanta questões de segurança e de soberania. A necessidade de construir estratégias de desenvolvimento digital para contrariar a total dependência da Europa face aos gigantes digitais constitui hoje uma evidência, ainda que pouco debatida na arena pública.
Os serviços de nuvem ocupam um espaço crescente na esfera social e económica, criando laços de dependência que deveriam suscitar uma maior preocupação junto dos decisores políticos e regulatórios. Ao longo dos últimos anos, os Estados, bem como grande parte das empresas e dos próprios cidadãos foram aderindo paulatinamente a estes serviços cuja oferta está fortemente concentrada num número reduzido de empresas que operam em territórios longínquos e desconhecidos de todos nós. As questões que se levantam no presente vão muito para lá da necessidade de regulação do mercado. A atual situação mexe com a segurança de todos nós e com a própria soberania dos estados. O Regulamento de Proteção de Dados, aprovado em pelo Parlamento Europeu e apresentado com a panaceia para todos os males, tem-se revelado insuficiente, exigindo-se assim novas respostas por parte dos governos e da União Europeia.
Os serviços de nuvem fornecem recursos de computação, armazenamento e aplicativos pela internet, eliminando a necessidade de manter servidores físicos. Não se limitam ao armazenamento de informação. Fornecem aplicativos ou plataformas completas para desenvolver, implantar e gerenciar aplicativos sem necessidade de qualquer a infraestrutura (IaaS, PaaS, SaaS, etc.). Os serviços de nuvem oferecem vantagens óbvias. Contudo, colocam desafios importantes. Para alem das questões de segurança de dados e privacidade, estes serviços criam simultaneamente uma grande dependência de terceiros, dependência esta que cresce com a concentração da oferta e com dificuldades tecnológicas e outras para mudar de provedor de serviços.
De acordo com as estimativas do Synergy Research Group, o gigante digital Amazon lidera o mercado mundial dos serviços de nuvem com uma quota de 34% (terceiro trimestre de 2022), seguido dos seus dois principais concorrentes: Microsoft Azure (21%) e Google Cloud (11%). Estes três operadores representam 2/3 do mercado mundial, enquanto os 8 maiores operadores concentram 80% do mercado que apresentou em 2022 uma taxa de crescimento de 24% e um valor global de 312 mil milhões de dólares. Em França, aqueles três operadores chegam a ocupar 80% do mercado. Em Portugal, onde o mercado em crescido na mesma ordem de grandeza, a liderança é encabeçada pela Microsoft, seguida da Amazon, da Salesforce e da Google. Para lá das questões concorrenciais ligadas às fortes possibilidades de abuso de posição dominante através da qual os gigantes digitais (principalmente norte-americanos, mas também chineses) reforçam as suas posições esmagando a concorrência, colocam-se aqui questões de segurança e soberania nacional, num momento em que quase todas as nossas infraestruturas materiais e imateriais, públicas ou privadas, dependem de um servidor e aplicativos controlados por atores estrangeiros.
Desde a diretiva 95/46/EC para proteger os cidadãos europeus contra a transferência descontrolada de seus dados pessoais para países terceiros até ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), várias têm sido as tentativas de proteger os interesses das empresas e dos cidadãos perante esta globalização digital profundamente assimétrica que coloca a Europa numa posição claramente subalterna face aos Estados Unidos. Importa lembrar a cláusula “Safe Harbour” aberta pela Comissão Europeia sob pressão dos grandes lóbis e que acabaria chumbada pelo Tribunal Europeu de Justiça, graças em parte às denúncias do lançador de alerta, Edward Snowden.
Estima-se hoje que 80% dos dados gerados pelos utilizadores europeus estejam alojados em servidores controlados por empresas norte-americanas. A soberania digital deve interpelar-nos a todos, autoridades públicas, empresas e indivíduos. A necessidade de construir uma estratégia consertada e coerente por forma a dominar esse novo terreno cheio de desafios e oportunidades deveria representar uma primeira prioridade dos governos e da União Europeia.