António Maia, Expresso online
Independentemente de sermos mais ou menos crentes, ateus ou agnósticos, cristãos ou que professemos outra qualquer religião, por certo que ninguém ficou indiferente ou passou ao lado da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e de toda a dinâmica que a marcou. Mesmo as vozes mais críticas, algumas muito negativas, que se ouviram, e ainda ouvem, e que são muito naturais - a liberdade de opinião é um valor fundamental de inquestionável importância -, são evidencias dessa marca impactante.
Independentemente de se concordar ou discordar mais ou menos com o sentido dos atos e dos discursos que foram sendo partilhados intensamente ao longo dos diversos dias e espaços cénicos que deram forma à JMJ, as mensagens apresentaram-se sempre com uma enorme carga simbólica. Todas muito positivas e agregadoras, como era suposto, dada a natureza litúrgica do evento.
Claro que a figura central foi a de Sua Santidade, o Papa Francisco, um ser humano maior, brilhante, com uma dimensão verdadeiramente universal, capaz de arrebatar qualquer um mero mortal para o patamar mais elevado da plenitude da espiritualidade humana, com uma presença forte e inspiradora e uma enorme capacidade para comunicar, e de, com as palavras mais simples, nos tocar a alma e convocar.
E para que nos convocou afinal Sua Santidade?
Para coisas tão mundanas e simples, com as quais todos nos cruzamos a cada dia, como sejam:
- O respeito pelo outro, porque, afinal de contas, o outro, seja ele quem for, não nem mais nem menos do que um igual a mim - um irmão;
- O sentido do coletivo, que nos diz que vivemos em comunidade, uns com os outros, e que é em comunidade que nos fazemos humanos e que a vida adquire um sentido e uma coerência plena;
- A harmonia, na medida em que ninguém se realiza, ninguém é nem se faz feliz sozinho, e que a entreajuda é uma força fundamental para o desenvolvimento da nossa dimensão humana;
- O sentido de respeito pela individualidade do ser humano, que deve pautar de modo inequívoco qualquer relação entre os indivíduos, e que se pode sintetizar do seguinte modo - todos diferentes, todos iguais e todos especiais;
Em suma, as palavras do Papa Francisco convocam-nos para sermos cada vez mais melhores seres humanos, e mostram-nos, ao mesmo tempo, que tudo depende afinal da atitude com que sejamos capazes de nos envolver, em cada circunstância da vida, com os outros e com o próprio mundo. São as atitudes, mais do que outro fator qualquer, que nos aproximam ou afastam dessa espiritualidade e vivência humana.
Na realidade falou-se essencialmente de ética e de integridade, pois claro. De seres humanos que, para o serem, têm de se posicionar de forma una, inteira, perante si próprios, perante a sua consciência e perante todos os demais. Pois é essa a circunstância que deve caracterizar as relações entre seres que se dizem e se assumem humanos. É a ética que nos faz humanos, como referi anteriormente em All we need is Ethics
Deste ponto de vista - e perdoem-me se agora possa parecer um pouco redutor, apesar de não o pretender - a realidade que a JMJ nos mostrou foi mais um espaço e uma oportunidade - muito importante, é certo! - de reflexão e apelo à Ética e à Integridade, ao que de melhor o homem pode, através da cooperação com o seu semelhante, dar a si próprio, enquanto pilar fundamental e estruturante da humanidade.
Na realidade, e bem vistas a coisas de um ponto de vista mais objetivo, não deixou de ser “apenas” mais uma das muitas e cíclicas ocasiões que a História nos tem mostrado de apelo e reforço para o envolvimento das pessoas em torno dos valores éticos próprios do seu tempo e dos deveres e responsabilidade de ação na sua concretização.
Ressalvo que utilizo o termo “apenas” não para apequenar o evento, nem, muito menos, para reduzir a sua grandiosidade e conteúdo, o qual, como referimos inicialmente, foi evidentemente extraordinário e nos deve deixar a todos com uma pontinha de grande orgulho nacional - uma vez mais, quando abraçamos desafios desta grandeza somos verdadeiramente capazes de mostrar o que de melhor temos quanto à nossa capacidade de organização de grandes eventos.
Porém, se neste caso da JMJ ficarmos unicamente neste registo, e receio que assim seja com muitas pessoas, incluindo pessoas com elevadas responsabilidades públicas, então provavelmente não percebemos grande coisa sobre o significado do que se passou nem do evento que realizámos.
Mas requerem igualmente e sobretudo a disponibilidade e o envolvimento de todos (de todos sem exceção!) para os operacionalizar, como bem foi salientado por Sua Santidade. Para os colocar permanentemente em prática. Para lhes conferir um sentido coerente e os fazer brilhar.
A Ética e a Integridade são muito mais decorrentes dessa consciência, envolvimento de espírito e disponibilidade para a ação permanente de todos, do que propriamente de discursos muito bonitos de circunstância para aplaudirmos.
Do ponto de vista da consciência individual, as atitudes quotidianas das pessoas parecem evidenciar que a Ética e Integridade é menos uma questão de autoavaliação responsável sobre o eu e os meus comportamentos, e mais a capacidade para sinalizar e identificar as incorreções nos outros. E todos sabemos, por vezes de forma menos consciente, como ninguém é perfeito. A ausência de Ética e Integridade ainda é muito percebida por todos e por cada um com um problema essencialmente dos outros.
Se todo o sentido grandioso dos discursos e das mensagens da JMJ não forem impactantes nem tiverem grande consequência no reforço do envolvimento e disponibilidade da generalidade das pessoas (como provavelmente sucederá), não ficará o homem com mais uma mão cheia de pouco? Não regressaremos à espuma dos dias, em que damos mais à importância ao nosso ter do que propriamente ao nosso ser? Esperemos que assim não seja, que, pelo menos, alguns traços da mensagem fiquem mais avivados nas nossas consciências.
Como se diz, o caminho faz-se caminhando, como de resto também foi expresso nas mensagens do evento, e deste ponto de vista, as palavras, os sinais, a empatia motivadora com que foram partilhados, são mais alertas para essa permanente atitude esforçada de todos no respeito pelo outro independentemente da sua circunstância.
A finalizar, ocorrem-me as também brilhantes palavras de Almada Negreiros, em “A invenção do dia claro” (1921), “quando eu nasci, as frases que hão de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa - salvar a humanidade”.