Mário Tavares da Silva, Expresso online
A nova legislação em matéria de proteção dos denunciantes já está a ser aplicada e em clara velocidade de cruzeiro, constituindo um relevante salto qualitativo na proteção dos interesses financeiros do Estado e, no caso especial dos fundos europeus que Portugal tem vindo a receber e continuará a receber durante os próximos anos, de uma maior e mais eficaz proteção dos interesses financeiros da União
Relatório sobre a situação do Estado de Direito na União Europeia foi publicado pela Comissão Europeia no passado dia 5 de julho, evidenciando-se que aproximadamente 65% das recomendações constantes do relatório de 2022 foram, total ou parcialmente, acolhidas, o que denota bem o compromisso dos Estados-Membros (EM) em adotar as medidas adequadas à sua resolução.
No entanto, e para nosso descontentamento, o cenário, apesar de algumas melhorias, continua, globalmente, a não ser animador, dado que o significativo esforço demonstrado pelos diferentes EM contrasta com a persistência de preocupações sistémicas que permanecem sem resposta.
Em Portugal, e sem prejuízo das muitas medidas positivas que vem sendo adotadas, verifica-se que continuam a ser identificados alguns temas a merecer a atenção devida, sobretudo relacionados com a necessidade de maior afetação de recursos humanos e financeiros às tarefas de prevenção, investigação e ação penal no complexo domínio da corrupção.
São também sinalizadas algumas preocupantes “bandeiras vermelhas”, em particular, ainda que não só, no domínio do tratamento de processos que envolvam a prática de subornos no estrangeiro e, ainda, no plano dos conflitos de interesses por parte de altos funcionários dos diferentes órgãos de soberania.
Sobre os casos de corrupção no estrangeiro, recorde-se que a OCDE há muito que vem sinalizando que a sua deteção continua a ser baixa, circunstância agravada pelo facto das autoridades encerrarem prematuramente os processos sem cuidarem de promover uma investigação mais exaustiva e proativa face aos factos de que tem efetivo conhecimento.
Saúda-se, entretanto, como positivo, o arranque da Entidade para a Transparência, enquanto responsável por acompanhar e verificar as declarações de património e de interesses dos titulares de cargos políticos e dos altos funcionários do Estado e, ainda, o início de funcionamento do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), de cujo funcionamento depende, refira-se, uma adequada e bem-sucedida concretização e operacionalização da Estratégia Nacional Anticorrupção.
Quer isto significar, na prática, que a instalação do MENAC, ocorrida em junho passado, coloca, definitivamente, a fasquia bem mais alta, pois a expetativa de todos nós é que esta nova entidade possa, não apenas dar continuidade ao relevante trabalho que durante anos o Conselho de Prevenção da Corrupção soube ir fazendo, como fazer mais e diferente, sobretudo procurando dosear sempre, de forma equilibrada e ponderada, a veste preventiva que herdou do seu antecessor com os poderes sancionatórios, de ultima ratio refira-se, que a lei lhe outorgou. A sua ação pode e deve constituir-se como decisiva, no quadro da melhoria contínua da execução das ações em curso destinadas a garantir um regular e vigilante acompanhamento das obrigações impostas às entidades, públicas e privadas, pelo «Regime geral de prevenção da corrupção».
De igual modo, a entrada na agenda dos debates parlamentares dos temas relativos às atividades dos grupos de pressão e o início de uma efetiva aplicação da nova legislação em matéria de proteção dos denunciantes constituem elementos positivos que não devem ser ignorados.
Em termos globais, a perceção dos especialistas e dos empresários, que aliás se tem revelado estável nos últimos 5 anos, é de que os níveis de corrupção no setor público permanecem relativamente baixos. É assim que se verifica, sem surpresa, que no índice de perceção da corrupção de 2022 apurado pela Transparência Internacional, Portugal tenha obtido 62/100, ocupando a 13.ª posição na União Europeia e a 33.ª a nível mundial.
Adicionalmente, o Eurobarómetro Especial sobre corrupção de 2023 revela que 93 % dos inquiridos consideram que a corrupção é uma prática generalizada no seu país (média da UE: 70 %) e que 54 % se sentem pessoalmente afetados pela corrupção na sua vida quotidiana (média da UE: 24 %). Já no que se refere ao universo empresarial, 85 % consideram que a corrupção é uma prática generalizada (média da UE: 65 %) e 57 % que a corrupção constitui um obstáculo ao normal desenvolvimento da atividade empresarial (média da UE: 35 %).
Além disso, verifica-se que apenas 28 % dos inquiridos consideram que existe um número suficiente de processos judiciais bem-sucedidos para dissuadir as pessoas de práticas corruptas (média da UE: 32 %), enquanto uns magros 17 % das empresas entendem como adequadas as punições dadas a pessoas e empresas apanhadas em práticas de suborno de funcionários superiores (média da UE: 30 %).
Outra preocupação continua a ser a da escassez de recursos para desenvolver as tarefas de prevenção, investigação e ação penal no domínio da corrupção, sendo notada, com particular destaque, a criticidade dessa escassez ao nível das polícias e dos serviços de apoio ao Ministério Público, com impacto direto e não negligenciável, nos processos de corrupção de elevada complexidade que o Ministério Público vem acompanhando.
Um outro ponto de preocupação que o Relatório evidencia prende-se com as limitações relativas às regras aplicáveis no plano das denominadas “portas giratórias”, concluindo que sobre esta relevante matéria não se registaram progressos, em particular no que se relaciona com o controlo das violações das restrições pós-emprego.
Apesar das regras relativas às portas giratórias serem, atualmente, apenas aplicáveis ao Governo e às entidades de regulação independentes, existe, é certo, um compromisso assumido pela Estratégia Nacional Anticorrupção no sentido de alterar as regras atuais, reforçando-as e ampliando as situações atualmente previstas.
Também a nova legislação em matéria de proteção dos denunciantes se encontra já a ser aplicada e em clara velocidade de cruzeiro, constituindo um relevante salto qualitativo na proteção dos interesses financeiros do Estado e, no caso especial dos fundos europeus que Portugal tem vindo a receber e continuará a receber durante os próximos anos, de uma maior e mais eficaz proteção dos interesses financeiros da União. Também aqui, no plano da adequada implementação dos canais de denúncias e da proteção dos denunciantes, o MENAC terá um papel relevante, dada a sua responsabilidade pela deteção e sanção de eventuais situações de incumprimento que ocorram nesse sensível domínio.
Finalmente, uma nota para o sempre incontornável tema associado aos riscos de corrupção na contratação pública.
Sobre este tópico, o Eurobarómetro Flash, relativo à atitude das empresas face à corrupção na UE mostra que 25 % das empresas em Portugal (sendo a média da UE de 26 %) consideram que, na prática, a corrupção as terá impedido, nos últimos três anos, de ganhar um concurso público ou um contrato público.
Esta realidade pode vir a ser fortemente mitigada pela adoção de novos modelos de contratação no âmbito do sistema central de contratação pública ou, ainda mais promissor, à luz do projeto conjunto que a OCDE e o Tribunal de Contas de Portugal têm vindo a desenvolver com o objetivo de reforçar as respetivas capacidades de auditoria e controlo, sobretudo no plano sempre relevante da análise de risco, com destaque para a atividade do Governo em matéria de contratos públicos.
O projeto procura, sobretudo, melhorar a capacidade de atuação do Tribunal com recurso à inteligência artificial (IA) e à aprendizagem automática, orientando-se para a valorização de uma adequada avaliação dos riscos de irregularidades nos contratos públicos e tornando, a final, a atuação do Tribunal, mais eficaz, sobretudo na preparação das suas ações de controlo e na afetação às mesmas dos seus recursos humanos e financeiros.
O potencial oferecido por estas novas tecnologias, sobretudo pela IA, constitui, sem dúvida alguma, uma das mais promissoras vias de mitigação de riscos na atuação das entidades públicas e privadas, aumentando a sua eficácia, reduzindo custos de funcionamento e aportando produtos de maior valor aos cidadãos que com elas interagem.