Óscar Afonso, Dinheiro Vivo
Há ainda pouco tempo assistimos a uma reportagem em direto de buscas ordenadas pelo Ministério Público à casa de Rui Rio, anterior Presidente do PSD, por suposto financiamento ilegal do partido, utilizando verbas públicas atribuídas pelo Parlamento ao Grupo Parlamentar do PSD, atendendo à informação que foi sendo divulgada na comunicação social e pelo próprio Rui Rio. Segundo vários especialistas na matéria, essas verbas podem ser usadas para atividades parlamentares e atividades políticas, tratando-se de um órgão com essa dupla faceta, pelo que a investigação e as buscas parecem carecer de fundamentação adequada, caso não existam outras razões ainda desconhecidas com base mais sólida.
De resto, é o insuspeito presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, do PS, a defender que não vê "nenhum financiamento excessivo", pedindo "esclarecimentos do Ministério Público" porque foram realizaram "buscas domiciliárias que foram televisionadas em direto e, portanto, houve uma violação manifesta do segredo de justiça", bem como "a busca a uma sede de um partido durante 19 horas (...) a propósito de uma questão cuja factualidade parece evidente".
Relembro que estamos a falar do mesmo Rui Rio que se bateu por uma reforma da Justiça - sempre recusada pelo Governo de António Costa, enquanto Rio foi Presidente do PSD -, em que uma das medidas preconizadas era a alteração na Constituição da composição e nomeação de órgãos judiciais, para que a maioria do Conselho Superior do Ministério Público, da Magistratura e dos tribunais administrativos e fiscais fossem individualidades independentes e não magistrados, de modo a "não haver nunca situações de juízes em causa própria". Rio defendia ainda que o Presidente da República pudesse apontar representantes seus no Conselho Superior do Ministério Público.
Ou seja, temos alguém que fez propostas de alteração no Ministério Público e algum tempo depois, já afastado da vida política, é alvo de uma investigação e buscas infundadas, na opinião dos especialistas.
A Constituição Portuguesa consagra o princípio da separação de poderes no artigo 111º (executivo, legislativo e judicial), pelo que qualquer suspeita, por mais remota, de perseguição política por parte de um órgão judicial, mesmo que dirigida a alguém já afastado da vida política - mas que, em qualquer caso, constituiria um condicionamento aos políticos no ativo, que em algum momento cessarão funções -, deveria merecer a atenção de toda a Sociedade e dos mais altos responsáveis, incluindo do Presidente da República, pois "à mulher de César não basta ser séria, é preciso parece-lo".
Admitindo que se trata de um erro de interpretação legal na origem da investigação e não de uma perseguição política - apesar de tudo, ainda creio na isenção do Ministério Público e da Justiça -, o problema é que parece perseguição e isso é relevante. Por outro lado, se fosse uma perseguição política, seria demasiado evidente e causaria grandes repercussões negativas ao próprio Ministério Público.
Seja como for, a ideia fica no ar e o Ministério Público terá de explicar muito bem todas as questões para que não restem dúvidas sobre a motivação da sua atuação - a questão mais importante - e não ter receio de assumir a mais que provável incompetência na articulação da fundamentação que gerou o processo de investigação e as buscas efetuadas.
Assim, tenho como explicação mais provável para todo este triste episódio a falta de preparação de quem justificou as bases da investigação, muito provavelmente devido à falta de recursos humanos devidamente qualificados - são constantes as queixas de responsáveis do Ministério Público de falta de meios, mas note-se que isso se estende à generalidade das áreas do Estado em sentido amplo, como bem sabemos.
Parece, por isso, haver sobretudo uma má alocação de meios no Ministério Púbico, pois de nada serve acionar meios de intervenção no terreno dispendiosos se a fundamentação de uma qualquer investigação e buscas associadas cai facilmente por terra, como parece suceder neste episódio. Ou seja, o dinheiro disponível para investimento deveria ser direcionado, em primeiro lugar, para recursos humanos qualificados, alocando-se o remanescente para investigar um conjunto exequível de processos relevantes.
Rui Rio certamente não quis dar a interpretação de perseguição política, mas alertou e bem para outro problema associado a este caso insólito, que é a suspeição permanente da classe política, que penaliza a Democracia.
Com efeito, se ele, que sempre cultivou a sua ação e imagem de pessoa séria e disposta a combater a corrupção - propondo uma reforma da Justiça também com esse intuito -, a suspeição lançada sobre a sua reputação poderá levar os cidadãos eleitores a pensar que os políticos "são todos iguais" nas piores condutas, afastando-se cada vez mais da vida política com reflexo em níveis ainda maiores de abstenção, que contribui, como se sabe, para a ascensão de partidos extremistas.
Abaixo deixo o detalhe das peripécias, outras opiniões relevantes, o que diz a lei e outras coisas que apurei.
1. A atenção esteve concentrada quase exclusivamente na investigação ao homem que não lesou o Estado, mas que viu a CNN chegar a sua casa primeiro do que os elementos da PJ. Seguro da sua seriedade, Rui Rio foi à janela marcar a agenda mediático/política por uma razão totalmente abstrusa, relacionada com uma prática comum há 40 anos em quase todos os partidos.
2. A ideia de que o partido e o grupo parlamentar são duas entidades distintas nunca passou pela cabeça de quem fez a lei, com que todos os partidos conviveram normalmente até às buscas à casa de Rui Rio - que viu aprendida a sua agenda de 2021 (um ano já fora do âmbito da investigação) -, 19 horas de buscas à sede de Lisboa do PSD e buscas à casa de uma antiga funcionária do partido.
3. O que é que se passou pela cabeça da procuradora Helena Almeida para avançar com aquele aparato absurdo, com autorização de um juiz, por causa de alguns funcionários serem pagos com a subvenção destinada ao PSD para o Parlamento e não com a subvenção destinada ao financiamento da atividade partidária e sob a acusação de querer "reduzir o passivo do partido"? Aliás, se formos ler a lei de atribuição das subvenções parlamentares, está lá a expressão "atividade partidária" (abaixo deixo a transcrição dessa parte). O Presidente da República diz apenas que poderão existir "zonas cinzentas", no que foi acompanhado por responsáveis do PS, com a honrosa exceção referida do Presidente do Parlamento, Augusto Santos Silva, mas também porque tem particular conhecimento e responsabilidade nesta matéria.
4. Há procuradores do Ministério Público profundamente ignorantes de como funciona a Democracia e o sistema político. Aparentemente, na cabeça da procuradora do MP, o PSD esteve a "roubar" dinheiro à Assembleia para dar ao partido e assim "reduzir o passivo". O grupo parlamentar é um órgão do partido. Ninguém gastou dinheiro que era de outrem, a não ser a procuradora que usou uma inenarrável quantidade de meios do Estado - que, como já mencionado, o Ministério Público está sempre a dizer que são escassíssimos - ao serviço da sua particular ignorância sobre o sistema político.
5. A norma em questão é o n.º 4 do artigo 5.º, da Lei 19/2003, de 20/6, que tem a seguinte redação:
"4 - A cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento, correspondente a quatro vezes o IAS anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga mensalmente, nos termos do n.º 6."
A subvenção é atribuída ao Grupo Parlamentar para 3 fins: (i) Assessoria aos deputados; (ii) Atividades partidárias em que participem; e (iii) Outras despesas de funcionamento.
A lei é assumidamente genérica e ampla, de tal modo que inclui todo o apoio que o partido preste aos deputados e o trabalho partidários destes.
A lei não financia só a atividade parlamentar, financia também a atividade partidária dos deputados e toda a assessoria que lhes seja prestada. Ora, esta assessoria não precisa de ser prestada por assessores nomeados, como é o caso dos assessores do Governo. É toda a atividade de assessoria, independentemente de quem a preste, e essa prestação pode ser feita por qualquer pessoa, e pode também ser efetuada pelo próprio partido, servindo a subvenção para financiar as despesas que o partido possa ter nessa assessoria.
A lei também não obriga, nem prevê sequer, que essa assessoria seja prestada na AR. Pode sê-lo em qualquer local e em qualquer tempo.
A assessoria pode ser prestada por uma empresa externa, que até pode ter sido contratada pelo partido, ou por um consultor especializado, que pode ser contratado pelo partido. A lei também não exige que a despesa seja atual, podendo ter sido suportada no passado. Por exemplo, a assessoria pode ser efetuada mediante o pagamento de uma remuneração a alguém que tenha desenvolvido um estudo no passado e que agora o disponibilize, por exemplo. Pode também essa despesa ter sido suportada pelo partido no passado e agora o deputado beneficiar desse estudo para a sua atividade parlamentar, caso em que o partido tem direito a receber uma subvenção por uma parte proporcional desse estudo.
Essa abrangência da lei não é uma lacuna nem uma zona cinzenta, mas é a manifestação da vontade do legislador em ser flexível e abrangente, sabendo perfeitamente que o Grupo Parlamentar pertence ao partido, os deputados são, em regra, seus militantes, e a sua atividade e a do partido se entrelaçam.
Por exemplo, a definição da estratégia do grupo parlamentar deve estar integrada na estratégia política do partido e a definição dessa estratégia é um serviço de assessoria do partido aos deputados.
Do mesmo modo, uma pessoa que desenvolva contactos na comunicação social para articular as intervenções de qualquer deputado nos órgãos de comunicação social, a partir da sede do partido, está a prestar um serviço de assessoria.
Além destas despesas, a subvenção pode ainda servir para financiar "Outras despesas de funcionamento", sendo que aqui se incluiu um universo de despesas suportadas pelo partido, que podem ser relevantes para a atividade dos deputados.
Esta subvenção não consiste num reembolso de despesas e o seu pagamento depende da existência dessas despesas. Na verdade, ela tem um valor fixo, que depende apenas do número de deputados. Esse valor corresponde, como a lei estabelece, a 4,5 vezes o valor do IAS anual, por cada deputado. Mesmo nos casos em que não exista qualquer despesa suportada pelo deputado, pelo grupo parlamentar ou pelo partido, a subvenção aplica-se do mesmo modo.
Na verdade, a subvenção é calculada de forma forfetária, mediante um valor padrão, que foi o próprio legislador que fixou, certamente porque entendeu ser o mais adequado às circunstâncias.
A lei prevê que sejam os partidos a requerer esta subvenção, mas nem sequer prevê que possam requerer um valor inferior, porque é a própria lei que o fixa.
A desnecessidade de documentação das despesas como pressuposto ao pagamento da subvenção e a previsão da fixidez do valor a pagar, evidenciam a natureza desta que é, na verdade, uma subvenção ao partido, como a própria epígrafe do artigo menciona.
O artigo 12.º estabelece o regime contabilístico e o n.º 8 obriga os partidos a anexarem às suas contas, entre outras, "as contas dos grupos parlamentares". Mas essas contas não servem para calcular o valor das subvenções a que nos temos vindo a referir. As contas, a sua organização nos termos do SNC e a sua apresentação ao Tribunal Constitucional servem apenas como instrumento de transparência e de escrutínio em geral.
Não se entende, sem mais, como é possível extrair consequências criminais deste regime em face do que é conhecido, pelo que, provavelmente, algo de muito estranho se está a passar. Nenhum jurista de bom senso pode ver crime naquilo que se conhece.