Rute Serra, Expresso online
Não basta bramir contra a corrupção. É preciso efetiva vontade de agir, de nos responsabilizarmos de facto. Para tal, comecemos por perceber as oportunidades de ação que tantas vezes desperdiçamos, para que mais tarde tenhamos algo para recordar (e dizer)
Arriscaria afirmar que, todos a quem for perguntado: é a favor ou contra a corrupção? responderia, sem relevante hesitação, que são contra (incluindo, muito provavelmente, os que prevaricam). De facto, qualquer cidadão compreende, com maior ou menor conhecimento empírico sobre o fenómeno, que uma sociedade permeável à corrupção, à fraude, ao suborno, ao tráfico de influências, e a outros tantos tentáculos perniciosos relacionados com o tema, não só nos atrasa do ponto de vista civilizacional, como afeta diretamente direitos – direitos humanos.
No rescaldo dos recentes haraquíris que alguns destacados políticos e funcionários europeus cometeram neste contexto, e com as eleições europeias a espreitar, foi anunciada a Declaração Conjunta sobre as Prioridades Legislativas da União Europeia (UE) para 2023 e 2024, da responsabilidade das três instituições que lideram a UE: a Comissão Europeia, o Parlamento e o Conselho. Em maio, três vice-presidentes da Comissão e dois comissários europeus apresentaram publicamente um pacote anticorrupção que inclui a proposta de uma diretiva específica de combate à corrupção, uma comunicação conjunta e um novo regime de sanções para combater atos de corrupção em todo o mundo.
A proposta de diretiva relativa ao combate à corrupção (que se prevê aprovadas antes de junho de 2024) visa elevar os padrões do direito penal na luta contra a corrupção e inclui referências significativas aos sectores público e privado. Em síntese, pretende-se harmonizar conceitos, desde logo considerando a repressão da corrupção transnacional, eliminar obstáculos às investigações, reforçando os meios dos órgãos de polícia criminal e garantindo a necessária independência dos organismos especializados na prevenção e combate à corrupção. Em termos preventivos, são consideradas áreas até aqui não reguladas, como a obrigação de os Estados-Membros adotarem regras eficazes em matéria de livre acesso a informações de interesse público, a divulgação e gestão de conflitos de interesses, a divulgação e verificação dos bens dos funcionários públicos e a regulação das interações entre os sectores público e privado.
Para além destes objetivos, o artigo 3.º do texto da proposta de diretiva apela explicitamente aos Estados-Membros da União Europeia para que "promovam a participação da sociedade civil, das organizações não governamentais e das organizações de base comunitária nas atividades anticorrupção". Sim, porque todos somos (devemos ser) agentes de saúde pública, de proteção civil e também de direitos humanos.
Prevê-se ainda a criação de uma rede da UE contra a corrupção que reunirá as autoridades policiais e públicas, mas também representantes da sociedade civil e de organizações internacionais, peritos e investigadores. A rede contribuirá para a recolha de provas e dados, elaborará orientações práticas e fornecerá contributos para uma estratégia anticorrupção da UE a desenvolver em consulta com o Parlamento Europeu e o Conselho. Uma das suas primeiras tarefas consistirá em apoiar a Comissão Europeia no levantamento das zonas de alto risco de corrupção. Este é o momento de garantir – mais uma responsabilidade de todos nós - que a esta rede sejam atribuídas uma missão e uma governação claras e que a participação das organizações da sociedade civil e dos peritos seja significativa.
Seja qual for o texto final da diretiva, nada impede, aliás, tudo convoca, a que, enquanto cidadãos, reclamemos que na transposição daquela diretiva para legislação nacional, e considerando a realidade do nosso país, se vá além das “regras mínimas” para definições e sanções que se encontrem estabelecidas na diretiva.
Mas vivemos o momento ideal para intervir noutros fóruns correlacionados: estão em curso as discussões relativas à revisão da 6.ª diretiva relativa ao branqueamento de capitais (adotada em 2021) e colocam-se neste âmbito, grandes expetativas relativas à regulação final do acesso aos registos de beneficiários efetivos, depois de em novembro de 2022, o Tribunal de Justiça da UE ter declarado “inválidas” as disposições que concediam acesso aos registos de beneficiários efetivos a um vasto público, sendo certo que no mínimo, jornalistas, organizações da sociedade civil e outras partes interessadas que evidenciem interesse legítimo, não devem ver coartado o seu acesso a esta informação.
Outro ato legislativo que afeta o sector privado - a proposta de diretiva relativa ao dever de diligência em matéria de sustentabilidade das empresas - encontra-se em fase final de negociação, depois do Parlamento ter proposto a inclusão de uma menção, até agora completamente ausente, à forma como a corrupção e o suborno podem aumentar os impactos adversos nos direitos humanos e no ambiente. A UE deve garantir que a sua futura nova legislação incorpore de forma consistente a prevenção da corrupção como parte dos deveres de diligência devida das grandes empresas, tal como a diretiva relativa aos relatórios de sustentabilidade das empresas, em vigor desde janeiro de 2023, as obriga a divulgar informações sobre fatores de governação como "a ética empresarial e a cultura empresarial, incluindo a luta contra a corrupção e o suborno, a proteção dos denunciantes (...)" e as "atividades de lóbi".
Não basta bramir contra a corrupção. É preciso efetiva vontade de agir, de nos responsabilizarmos de facto. Para tal, comecemos por perceber as oportunidades de ação que tantas vezes desperdiçamos, para que mais tarde tenhamos algo para recordar (e dizer).