Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Nos dias 22 e 23 de junho, realizou-se em Paris a Cimeira para um Novo Pacto Global de Financiamento mais inclusivo.

À partida, o objetivo da cimeira, convocada pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, era que os líderes mundiais presentes (mais de 300 instituições e personalidades, incluindo responsáveis dos governos das principais economias mundiais) encontrassem consensos no sentido de um sistema financeiro internacional mais inclusivo e alinhado com a Agenda 2030 das Nações Unidas, de modo a promover o desenvolvimento sustentável de mais países, pois a luta contra a pobreza, a descarbonização da economia (para atingir a neutralidade carbónica até 2050) e a proteção da biodiversidade estão estreitamente interligadas.

Em particular, a cimeira visava estabelecer os princípios para futuras reformas e abrir caminho para uma parceria financeira mais equilibrada entre o Norte e o Sul globais, com vista a que mais países (sobretudo os menos desenvolvidos) tenham acesso ao financiamento de que necessitam para investir no desenvolvimento sustentável, proteger melhor a natureza e reduzir as emissões, bem como ajudar a proteger as populações das alterações climáticas.

A ideia era que as ideias geradas nesta cimeira - incluindo atores não estatais, com realce para os fundos privados, indispensáveis para alavancar o financiamento - servissem de suporte às decisões a tomar na cimeira do G20 em setembro e na conferência COP 28 no final de novembro e início de dezembro, no sentido de uma arquitetura financeira global em linha com os desafios, permitindo mais recursos, protegendo-os de possíveis choques económicos e geopolíticos, e cumprindo os mais rigorosos critérios internacionais de justiça, para recuperar a tendência de longo prazo de redução da pobreza. Tal arquitetura teria de assegurar a sustentabilidade e previsibilidade de longo prazo no financiamento do clima e bens públicos globais (de modo a evitar interrupções abruptas), tendo em conta as características dos diferentes tipos de bens públicos e as distintas capacidades e necessidades dos países.

diagnóstico da situação de financiamento dos países menos desenvolvidos (o foco da cimeira), muito bem apresentado no sítio de internet da conferência, resume-se em dois pontos.

1. Após o choque sanitário e económico da covid-19, a dívida pública está em níveis recorde em muitos países, gerando riscos nos países mais vulneráveis (cerca de 1/3 dos países em desenvolvimento e 2/3 dos países de mais baixo rendimento estão num nível de risco elevado associado à divida pública), o que, em conjunto com a rápida subida das taxas de juro para travar a elevada inflação, tem gerado um aumento da volatilidade financeira e uma redução do apetite pelo risco, travando o investimento, em particular no mundo menos desenvolvido.

2. Em resultado, a tendência de redução da pobreza que marcou as últimas décadas foi interrompida, senão mesmo revertida em parte, gerando uma divergência global. Há, por isso, risco de que, devido à falta de cooperação e de ambição, o mundo fique aquém dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 das Nações Unidas.

Embora fosse apenas parte da agenda, o financiamento é essencial para providenciar bens públicos globais beneficiando o Norte e o Sul globais, o que requer, desde logo, o reconhecimento da responsabilidade global na produção desses bens dentro de uma visão comum do futuro e dos desafios da Terra, planeta que todos partilhamos, assim como a necessidade de formas mais fortes e permanentes de cooperação promotoras de prosperidade partilhada e inclusiva.

Atingir os objetivos de sustentabilidade, redução da pobreza e provisão de bens públicos globais implica escalar significativamente o financiamento, o que é especialmente importante para os países mais pobres, pela necessidade de grandes investimentos à cabeça que só irão produzir resultados após um período considerável.

Passo agora a uma análise crítica a dois níveis, antes e depois da cimeira.

A) Expectativas prévias (esta parte está em linha com os comentários que fiz a respeito da cimeira durante a minha participação no programa 360 da RTP, no dia 22 de junho à RTP).

No site da conferência, o "elefante no meio da sala" era a ausência de referências explícitas à questão crítica do aumento de representatividade dos países emergentes no FMI e Banco Mundial, as organizações financeiras internacionais que saíram dos Acordos de Bretton Woods de 1944 e que determinam a arquitetura financeira global desde então. Se este tema não fosse abordado na cimeira - como se veio a verificar -, logo à partida os resultados seriam duvidosos e dificilmente poderiam agradar ao chamado Sul global, dificultando qualquer tomada de decisão impactante. Trata-se de um tema que já é falado há muitos anos, mesmo antes das questões do clima terem assumido a emergência dos dias de hoje, devendo ser decidido separadamente, em meu entender.

Ou seja, idealmente, esse tema da representatividade deveria ter sido ser alvo de uma cimeira específica antes desta cimeira Macron, de modo a aumentar a eficácia da discussão, em suporte às decisões das cimeiras dos próximos meses. Naturalmente, as enormes divisões geopolíticas do contexto atual, marcado pela luta pela hegemonia global entre EUA e China (que se agravou com a guerra na Ucrânia), dificultam ainda mais este tipo de discussão. Compreendo, por isso, que seja um momento difícil para debater a questão da representatividade, mas sem ela é difícil chegar a resultados verdadeiramente impactantes.

Por outro lado, o ótimo é inimigo do bom. Juntar muitos temas do desenvolvimento, mesmo que interligados, pode revelar-se pouco produtivo, pelo que poderia ser preferível alcançar primeiro convergências por tema. Entende-se a ambição e o protagonismo visados por Macron - possivelmente para desviar os holofotes dos problemas de a nível interno ou, quem sabe, para se projetar num futuro cargo internacional -, mas infelizmente as expectativas à partida eram muito baixas, pelas razões referidas e pelo mau histórico deste tipo de cimeiras, em que os interesses dos protagonistas são muitas vezes contrários em variados temas e acontecem minorias de bloqueio para tentar colocar na agenda a resposta a interesses específicos ou simplesmente para impedir propostas concretas penalizadoras para países ou players poderosos.

A razão para as dificuldades é simples. A provisão de bens públicos a nível global, como assegurar uma baixa proporção de gases de efeitos de estufa na atmosfera para garantir a qualidade do ar e contrariar as alterações climáticas, é muito mais difícil do que prover bens públicos em cada país, como um parque, devido às características desses bens (não excludentes e não rivais no consumo), pois toda a gente os usa e ninguém está disposto individualmente a financiá-los. Se no caso dos países são os Estados que asseguram a provisão e financiamento dos bens públicos, a nível internacional não está completamente definida a responsabilidade pela provisão de muitos deles, em particular os relacionados com o clima (como no exemplo dado dos gases de efeito de estufa), e muito menos o seu financiamento, porque todos ou múltiplos países estão potencialmente envolvidos, complexificando a o processo de decisão, que tem de ser inserido no âmbito de organizações internacionais.

Por exemplo, o Acordo de Paris de combate às alterações climáticas, assinado em 2015, não passa de um protocolo de intenções com cenários e metas, não abrangendo todos os países da mesma forma e as possibilidades de desvio e incumprimento são muitas, incluindo as maiores economias, com responsabilidades relativamente maiores (veja-se o exemplo dos Estados Unidos, que abandonaram o Acordo na presidência Trump, tendo a atual Administração Biden revertido, entretanto, a decisão).

B) Resultados da cimeira

Tal como antecipando, os resultados foram desapontantes, mas melhores do que nada.

A principal decisão foi um acordo de financiamento prometido há 14 anos, mas que só agora foi cumprido, com a entrega de 100 mil milhões de euros aos países em desenvolvimento via reafectação de parte dos direitos de saque especiais dos países ricos junto do FMI através de bancos multilaterais de desenvolvimento, uma solução encontrada pelo Banco Africano de Desenvolvimento que foi elogiada na conferência, tendo sido anunciada pela diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva.

Parece muito dinheiro, mas se consideramos que são os designados países do "Sul Global" os mais afetados pelas alterações climáticas e foram os países ricos que causaram o problema, vemos que não se trata de muito mais do que uma espécie de "esmola" para calar as queixas.

Na verdade, atendendo à quantidade de países em desenvolvimento e às respetivas necessidades de investimento, o montante em causa não passa de uma "gota no oceano", sendo por isso necessárias medidas muito mais decisivas.

Assim, considero bastante mais relevante o não acolhimento dos passos preconizados para o ambicionado "novo pacto financeiro global", que era o objetivo principal da cimeira, tornando o balanço da cimeira negativo.

Não geraram consenso as propostas defendidas por Macron de criação de impostos internacionais sobre transações financeiras, bilhetes de avião e transportes marítimos para financiar a luta contra as alterações climáticas e a pobreza, nem mesmo a aplicação de uma taxa sobre emissões dos transportes marítimos, embora as medidas continuem na agenda.

Ainda mais importante, a questão da reforma das instituições de financiamento internacionais (FMI e Banco Mundial) para aumentar da representatividade dos países em desenvolvimento (em particular os emergentes) esteve claramente longe da agenda, como antecipado.

A esse respeito, é sintomática a declaração do Presidente do Brasil, Lula da Silva, no final da cimeira, avisando que "é preciso deixar claro que, se não mudarmos as instituições, o mundo continuará o mesmo".