Rute Serra, Expresso online
Face à proliferação de aplicações que utilizam a inteligência artificial para, supostamente, melhorar a nossa vida, importará que os esforços de todos se concentrem não em repudiar o que é inevitável mas antes em pugnar para que a utilização da inteligência artificial nas nossas vidas seja eticamente garantida
O mundo novo, esse de que nos falava Huxley em 1932, acontece-nos agora. Nos últimos anos, primeiro timidamente, ultimamente sem pudores, vimos proliferar as aplicações que utilizam a inteligência artificial para, supostamente, melhorar a nossa vida, rasgando caminho na cada vez maior dependência da humanidade, das máquinas.
Perante esta assumida realidade, importará que os esforços de todos, se concentrem não em repudiar o que é inevitável, por economia de esforço, mas antes em pugnar que a utilização da inteligência artificial nas nossas vidas seja eticamente garantida.
Sabemos que um dos mais relevantes desígnios da União Europeia (UE) é a transição digital. Portugal, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (e apenas relativamente a estes fundos europeus) comprometeu-se com a execução, para este fim, de 2.460 milhões de euros até 2026. Mas todos percebemos já os desafios que as novas tecnologias apresentam aos governos, às empresas e às pessoas: apenas a utilização de uma inteligência artificial de confiança (promotora da inovação, mas que garanta segurança e proteja os direitos humanos) pode, de facto, alavancar a Europa como um centro global digitalmente eficaz. Com efeito, aguardamos ainda este ano a publicação da primeira regulamentação global da inteligência artificial pela UE, a qual promete não descurar as questões éticas envolvidas.
O sucesso, quer do segmento transição digital do PRR, quer do Plano de Ação para a Transição Digital de Portugal, ou mesmo de qualquer outra política pública direcionada ao tema, será medido na exata medida em que estes planos sejam aptos a potenciar a agilidade dos governos, reduzir a burocracia minimizando desse modo a discricionariedade e logo, as oportunidades de suborno, reduzindo ao limite a existência de fenómenos de natureza corruptiva.
Que o uso de modelos preditivos de inteligência artificial podem ser um instrumento útil para a redução de casos de corrupção, não restam dúvidas: o uso de tecnologias disruptivas e de análise de dados, por instâncias públicas (em especial as que detenham competências de controlo e fiscalização) e privadas (mormente as que se dediquem à atividade de auditoria), ou por organizações da sociedade civil que exerçam a advocacy para a integridade, incrementam a eficácia da prevenção e da deteção da fraude e da corrupção.
São vários os exemplos existentes (entre outros), em diferentes quadrantes geográficos, desta evidência: ao nível fiscal, no Reino Unido está a ser utilizado desde 2010 o sistema CONNECT para detetar fugas dos contribuintes aos impostos. Na perspetiva da contratação pública, desde 2006 que a Coreia do Sul emprega a tecnologia para detetar cartéis e manipulação de licitações, através do programa BRIAS. Na Ucrânia, país que apresenta elevados indicadores de corrupção, o sistema DOZORRO, que garante o acesso aberto a processos de contratação pública, utilizado desde 2016 e resultante de uma parceria estabelecida entre o governo, as empresas e a sociedade civil é mundialmente reconhecido pelo seu caráter inovador e inibidor da corrupção nesta área de peso orçamental para qualquer governo. Na Índia, desde 2009 a utilização do sistema de identificação exclusivo AADHAAR, foi útil para reduzir a corrupção nos programas de empregos e pensões. O Banco Mundial utiliza desde o ano 2000 o Sistema Automatizado de Prova de Conceito para detetar fraude em projetos financiados pela instituição, com taxas de sucesso na ordem dos 70%.
Mas porque toda a bela tem senão, não esqueçamos que no que concerne à perspetiva ética, a tecnologia é agnóstica.
Esta vaga de IntegrityTech (tecnologia de integridade) indubitavelmente útil para propulsionar a prevenção, deteção e mitigação da fraude da corrupção, acarreta também custos adicionais significativos ao nível do esforço orçamental dos governos (especialmente relevante em países com disponibilidades orçamentais reduzidas). A estes, acresce a complexidade do próprio fenómeno da corrupção, as preocupações com a privacidade dos cidadãos, a ainda fraca digitalização dos processos, a opacidade relativa ao desenvolvimento dos algoritmos (o denominado problema black box) e a dianteira que os (ciber)criminosos sempre apresentam, permitindo-nos concluir que não existem, de facto, neste âmbito, soluções definitivas de erradicação.
Compete-nos, portanto, não esmorecer nesta senda - a única possível, de mitigar a corrupção com as armas que temos.