José António Moreira, Expresso online

Defendo fortemente a inclusão de uma maior componente cultural na análise e combate a fenómenos de fraude e corrupção

A maioria dos artigos, intervenções, regulamentos e legislação sobre combate a fraude e corrupção tendem a assumir um caráter sistémico, ou seja, focam-se sobre os sistemas e processos onde estes fenómenos ocorrem. Exemplos são os sistemas empresariais (empresas), a relação entre cidadãos e o Estado, o sistema judicial, o sistema político, o sistema de fundos comunitários, o sistema bancário, etc.

Há um inevitável academismo, apoiado por mais ou menos experiência concreta nos sistemas em causa, que está na base do que se cria para combater fraude e corrupção. Alguns exemplos destas medidas sistémicas são Códigos de ética e conduta, mecanismos de denúncia (whistleblowing), diretivas nacionais ou europeias de vários tipos, regulamentos de compliance, etc.

Naturalmente os fenómenos de fraude e corrupção ocorrem no seio de ‘sistemas’, sistemas esses geralmente habitados por seres humanos. Os sistemas podem incentivar ou desincentivar estes fenómenos, mas é objetivamente claro que os perpetradores são sempre agentes humanos (a não ser que consideremos processos algorítmicos ou bots de inteligência artificial, algo que já esteve mais longe).

Em minha opinião, é aqui que muito do combate a fraude e corrupção falha: a perspetiva sistémica tende a focar-se demasiadamente nos processos e estruturas, encarando os agentes humanos como meros componentes destes sistemas, caracterizados de alguma forma como abstrações relativamente ‘neutras’, do ponto de vista comportamental.

Ou seja, usa-se uma certa forma de ‘idealização’ dos agentes humanos pertencentes aos sistemas que não corresponde de todo às criaturas multidimensionais e com características culturais marcantes e distintivas que imperam serem tidas em conta aquando da definição de estratégias e processos de prevenção e combate a fenómenos de fraude e corrupção.

Para melhor compreensão, um caso análogo passa-se com a utilização abusiva em Economia do ‘homo economicus’, esse agente abstrato que toma decisões económicas consistentemente racionais sempre com base no seu interesse pessoal, maximizando proveitos e reduzindo custos. Já há muito se chegou à conclusão que esta metodologia limita a capacidade de explicação e previsão de modelos económicos, sobretudo porque os agentes humanos são muito mais complexos que essa última abstração.

Defendo fortemente a inclusão de uma maior componente cultural na análise e combate a fenómenos de fraude e corrupção. Refiro-me sobretudo à cultura enquanto marca distintiva, a nível comportamental, de um agrupamento de pessoas geralmente pertencentes a um país ou região. Nos meus artigo anteriores (por exemplo “Os grunhos” e “Os encobertos”) tenho explorado a temática das características culturais de vários países da Europa (geralmente em comparação com Portugal) e a sua influência nos fenómenos de fraude e corrupção.

Sinteticamente, ter em baixa estima os aspetos culturais na análise, prevenção e combate à corrupção leva a duas consequências:

  1. As estratégias e iniciativas tendem a falhar por não terem em conta os traços culturais específicos dos povos / populações visadas, neste caso dos portugueses. Quem comete fraude (tal como quem não comete fraude) são pessoas, não abstrações académicas;
  2. Os próprios visados pelas medidas do ponto anterior (os cidadãos, empregados, etc) sentem, de alguma forma, que não são visados ou implicados, ou seja, não se sentem responsabilizados (já ouvi dizer coisas como ‘sim, sim, são mais umas burocracias que temos de cumprir...).

Em jeito de clara provocação, é sempre mais fácil lidar com abstrações que com pessoas concretas. Todavia corre-se o risco dos resultados de tudo o que se faz (e mais se devia fazer) para mitigar os efeitos nefastos da fraude e da corrupção seja desadequado. Tudo porque não se quis olhar para o povo que somos, com as suas qualidades e defeitos, e, sobretudo, com as suas idiossincrasias.

Concluo com uma observação tangente ao que escrevi acima: ao se abordarem fenómenos de fraude e corrupção a níveis abstratos, geralmente ligados a pessoas com influência e organizações de nível distante do cidadão comum, com elevados graus de mediatização, cria-se a imagem de que ‘aqueles malandros só sabem roubar’. É da maior importância que todos os cidadãos tenham a noção que têm um papel e uma responsabilidade e tudo isto. Em tempos de comemoração dos 49 anos do 25 de Abril, seria bom que todos se lembrassem que a Liberdade não é um dado adquirido, antes uma conquista diária, pessoal e coletiva.