Mário Tavares da Silva, Expresso online

Escrito por um grupo de peritos independentes, o Relatório Mundial da Felicidade constitui, em nosso entender, mais do que uma publicação notável da autoria da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável, alimentada pelos dados da sondagem realizada pela Gallup World Poll, um autêntico tratado de políticas públicas que, estou certo, todos os decisores, públicos e privados, nas suas mais diferentes áreas de responsabilidade e de governação, não podem, nem devem, naturalmente, deixar de ler, de refletir e de dele extraírem as lições que possam impactar na vida dos seus concidadãos para os tornar, verdadeiramente, ainda mais felizes

A recente divulgação do interessante e didático Relatório Mundial da Felicidade (World Happiness Report 2023), desafiou-me a compreender melhor o significado de distopia, por oposição, refira-se, à ideia de utopia, ou se preferimos, a diferença, respetivamente, entre comunidades de homens e de mulheres experienciando vivências distópicas, por comparação com outras experienciando vivências utópicas.

De uma forma simplista, a distopia, segundo alcancei do referido relatório, magistralmente escrito e metodologicamente bem suportado, traduziria então um país imaginário com o povo, pasme-se, menos feliz do mundo.

Nesta medida, o objetivo de estabelecer uma distopia seria, sobretudo, o de procurar uma referência que permitisse que todos os países pudessem ser favoravelmente comparados, assumindo que nenhum país seria mais pobre do que aqueles que experienciassem viver em distopia.

No relatório, o exercício que se encontra desenvolvido, assenta em seis variáveis-chave, sendo que as notas mais baixas observadas para essas variáveis-chave caracterizariam os países como vivendo numa distopia.

Ou seja, por oposição a uma utopia, esses países ditos distópicos gravitariam, então, num ecossistema marcado por uma vida frágil, existência desagradável, rendimentos muito baixos, esperança de vida reduzida, baixos índices de generosidade, altos índices de corrupção, débeis e fracas liberdades e baixos apoios sociais.

A sociedade distópica seria, por assim dizer e com base numa breve consulta que ousámos fazer no ChatGPT, uma sociedade tipicamente caracterizada pelo totalitarismo, assolada por desastres ambientais ou outras formas de colapso social e em que as pessoas sofreriam, frequentemente, de opressão, pobreza e, sobretudo, de falta de liberdade.

Aqui chegados, a pergunta chave e a que o Relatório procura dar resposta formula-se de modo cristalino: seremos nós realmente felizes?

Perante isto, e antes de tudo o mais, atrever-me-ia a dizer que, paradoxalmente, sobretudo dada uma guerra que ninguém antecipara e que traz consigo destruição e mortes em resultado de uma invasão ilegítima, barbará e criminosa perpetrada pela Rússia sobre uma Ucrânia soberana, o Relatório Mundial da Felicidade de 2023 se assumir, legitimamente refira-se, e pelas preocupações que enuncia, um significado particularmente relevante.

E fá-lo, no meu modesto entender, para que se possa encetar, desde já, ou pelo menos provocar, uma profunda reflexão quanto à necessidade de redefinição das mais variadas políticas públicas, quer a nível europeu quer a nível global.

No caso dos dois referidos países, é curioso até notar que, por exemplo, se ambos registaram aumentos globais da benevolência durante os anos de 2020 e 2021, já durante o ano de 2022, a benevolência cresceu acentuadamente na Ucrânia ao passo que caiu significativamente na Rússia.

Apesar da magnitude do sofrimento e dos danos infligidos ao povo ucraniano, as avaliações quanto à importância da vida permaneceram mais elevadas em setembro de 2022 do que no rescaldo da anexação ocorrida em 2014, o que se poderá atribuir a um sentido mais forte quanto à existência de um propósito comum, de maior benevolência e, sobretudo, de uma maior confiança nas lideranças ucranianas, o que não sucedeu, note-se, em igual medida, nas lideranças russas.

Publicado num dramático momento da nossa história, o Relatório Mundial da Felicidade de 2023 assinala os quase 11 anos desde a adoção, em 28 de junho de 2012, da Resolução 66/281 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, proclamadora da simbólica data de 20 de março como o Dia Internacional da Felicidade, agora em crise refira-se, enquanto a guerra perdurar, provando que lá onde não impera a paz, as pessoas não terão nunca as condições mínimas para serem verdadeiramente felizes.

Escrito por um grupo de peritos independentes, o Relatório Mundial da Felicidade constitui, em nosso entender, mais do que uma publicação notável da autoria da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável, alimentada pelos dados da sondagem realizada pela Gallup World Poll, um autêntico tratado de políticas públicas que, estou certo, todos os decisores, públicos e privados, nas suas mais diferentes áreas de responsabilidade e de governação, não podem, nem devem, naturalmente, deixar de ler, de refletir e de dele extraírem as lições que possam impactar na vida dos seus concidadãos para os tornar, verdadeiramente, ainda mais felizes.

Dos cinco capítulos que o integram, o primeiro, relativo à previsão de uma desafiante “Agenda para a Felicidade”, a implementar, desejavelmente, nos próximos 10 anos, encerra um conjunto de relevantes prioridades para as instituições públicas e privadas.

A ideia é forte e temos de saber agarrá-la.

Dispomos todos, nessa medida, de uma janela de oportunidade única, irrepetível diria mesmo, dado que a prossecução responsável e eficaz dessas prioridades ao nível das opções das diferentes políticas públicas pode proporcionar uma efetiva revolução no real bem-estar das pessoas, aproveitando e potenciando o extraordinário avanço que a humanidade tem evidenciado nos mais variados domínios, seja pela utilização dos conhecimentos e descobertas que se vem produzindo, em particular no plano das novas tecnologias, seja pelo incremento e robustecimento das pautas axiológicas e éticas que constituem referenciais para as mais diferentes formas de atuação humana.

Deste modo, o Relatório, partindo da aprendizagem que decorre dos resultados do questionário aplicado a milhões de inquiridos em todo o mundo, permite uma compreensão mais clara dos fatores-chave e que permitem explicar as diferenças no bem-estar dos vários países do mundo.

Entre esses fatores, descortinamos relevantes aspetos que recobrem, por exemplo, temas relativos à saúde física e mental (com especial enfoque para o work life balance), passando pelas relações humanas (na família, no trabalho e na comunidade), aos rendimentos e ao emprego, virtudes de carácter, incluindo a pró-socialidade e a confiança, o apoio social, a liberdade pessoal, a ausência de corrupção e um governo efetivo e promotor de igualdade real entre todos os seus concidadãos.

Não podemos, nem devemos nunca olvidar que os nossos hábitos e os nossos valores são formados, em primeira linha, pelas instituições sociais onde vivemos, com as quais interagimos, e que pautam e disciplinam, em maior ou menor intensidade, as relações que com elas se estabelecem.

Não surpreende, nesta medida, que os países nórdicos, embora não sendo tão ricos como muitos outros países que com eles diretamente comparam, apresentem ainda assim o maior nível de bem-estar, sobretudo porque as suas instituições dirigem primacialmente as suas agendas para a obtenção de níveis mais elevados de confiança, de respeito mútuo e de apoio, quer na relação estabelecida entre as organizações e as pessoas, quer nas relações que as próprias pessoas estabelecem entre si.

A desejada revolução do bem-estar de todos e de cada um de nós dependerá, em larga medida, do desempenho das instituições sociais que consigamos implementar, desenvolver e fortalecer internamente e na relação com os outros países.

Tratam-se, afinal, de pequenas coisas que, desde cedo, podem e devem ser feitas e que tanto, no final do dia, podem significar para as pessoas.

A ausência da corrupção está entre elas, como muitas outras que o Relatório procura evidenciar.

É caso para dizer que sermos felizes não é assim tão difícil…

Basta querer e, sobretudo, fazer diferente, rumando assim à (utópica) felicidade.