Óscar Afonso, Expresso online
A médio e longo prazo, se for possível evitar conflitos e manter um funcionamento regular e sem restrições dos fluxos internacionais de comércio e investimento, a existência de alguma inflação e a normalização da política monetária serão fatores positivos
Em termos de tendências de fundo, realça-se o efeito estrutural benéfico da globalização na descida dos níveis de inflação a nível mundial, mas também os riscos de retrocesso que já começavam a emergir no final da década de 2010 (exemplo, medidas protecionistas do Trumpismo, em particular Estados Unidos vs. China, na luta pela hegemonia global).
A grande recessão de 2008/2009, a crise de dívida soberana europeia 2009-2018 (ano de saída da Grécia do programa de ajustamento), a redução das expectativas de inflação e os receios de deflação permitiram uma descida das taxas de juro para próximo de zero ou mesmo valores negativos (armadilha de liquidez), com a adoção de programas massivos de compras de ativos pelos principais bancos centrais, que deles se tornaram dependentes para manter as economias em crescimento económico e evitar efeitos recessivos (“continuar a beber para não ressacar”).
Apesar dos riscos inflacionistas claros desta estratégia (contínuo das taxas diretoras para valores negativos com a adoção de programas massivos de compras de ativos, sobretudo dívida soberana, mais outros mecanismos inovadores, como o forward guidance), ela valeu a Ben Bernanke (e mais dois galardoados) – Presidente do banco central dos Estados Unidos, a Federal Reserve, durante a Grande Recessão –, o Prémio de Ciências Económicas em memória de Alfred Nobel relativo a 2022.
Em 2020, o ano mais crítico da pandemia, assistiu-se ao reforço (e ainda maior dependência) dos programas de compra de divida dos bacos centrais para limitar os efeitos recessivos do “Grande Confinamento”, levando as taxas de juro a terreno mais negativo. A inflação começou tenuemente a subir devido a essa expansão monetária ainda mais forte e às políticas orçamentais de apoio à procura – com realce para os apoios à manutenção de emprego e subsídios vários –, num contexto de redução da oferta global de bens e serviços em face das restrições de contacto social a nível doméstico e internacional, observando-se disrupções das cadeias de valor globais (disparo dos custos dos contentores, atrasos nas entregas, etc.) e um recuo do comércio internacional. A China, com a sua política de zero caso Covid-19, foi dos poucos países a evitar uma queda do PIB em 2020, mas atrasou o fim da pandemia no país.
Em 2021, as restrições da pandemia começaram a ser levantadas e assistiu-se a uma recuperação da confiança e das economias, que fez acentuar a subida da inflação, já que a oferta recuperou mais devagar do que a procura, estimulada pelas políticas monetária e orçamental e pelo dispêndio das poupanças acumuladas durante a pandemia, em face das medidas de apoio e da poupança precaucionaria. As cotações das matérias-primas e energia começaram também a disparar, sobretudo no final do ano, no caso da energia, porque as movimentações de tropas russas perto da fronteira da Ucrânia já faziam antever a possibilidade de um conflito.
A guerra adensou os problemas nas cadeias de valor globais (em face das sanções da UE e aliados à Rússia, com “efeito de boomerang”) e, em particular, levou a uma forte subida dos preços da energia (instrumento de chantagem da Rússia face à União Europeia, fortemente dependente da energia russa, em especial do gás natural) e da alimentação (a Rússia e Ucrânia são dos maiores produtores mundiais de trigo, milho e fertilizantes), que depois se transmitiram ao resto dos preços, dado o impacto transversal nas cadeias de valor, a que se seguiram efeitos de segunda ordem (salários, rendas, lucros). O resultado foi a subida da inflação para níveis que já não eram vistos desde o milénio anterior.
A resposta de política monetária foi uma subida historicamente rápida das taxas de juro diretoras da Reserva Federal – e, não menos importante, uma redução também muito rápida do tamanho histórico do balanço do banco central, após compras massivas de ativos – , que foi acompanhada, embora mais tarde e de forma menos intensa, pelo Banco Central Europeu, com os efeitos em termos de redução da inflação a só se começaram a fazer sentir na parte final de 2022, sobretudo nos Estados Unidos (que começaram mais cedo a apertar a política monetária).
Contudo, os níveis de inflação eram ainda bastante elevados no final de 2022, contribuindo para a perda de poder de compra – cujo efeito no consumo será cada vez maior, à medida que se esgotam as poupanças da pandemia e as taxas de juro começam a apertar os orçamentos das famílias, sobretudo as mais endividadas –, dependendo também das medidas de mitigação dos efeitos da inflação mais ou menos generosas decididas pelos estados.
Outros fatores contribuíram para o início de uma lenta descida da taxa de inflação no final de 2022, como a redução das cotações do gás natural – devido ao Inverno mais ameno do que o esperado na Europa e às medidas de poupança de energia e diversificação de abastecimento pelos países da União Europeia –, bem como do petróleo e matérias-primas, neste caso sobretudo devido aos problemas na economia chinesa, não só devido à crise no imobiliário, mas também ao ressurgimento de casos de Covid-19, com a população menos imunizada do que nas economias avançadas devido à baixa cobertura vacinal e, sobretudo, à política de zero casos, que travou a imunização natural. O acordo para a exportação de cereais da Ucrânia e Rússia, mediado pela ONU, ajudou à moderação na subida dos preços dos alimentos, mas as tensões são frequentes e a continuação do acordo é incerta.
O cenário central das previsões dos principais organismos internacionais é de uma redução dos níveis de inflação nas principais economias, incluindo Estados Unidos e União Europeia, assumindo que não há um agravamento do choque de oferta, que o processo de normalização da política monetária se mantém e que os governos não alimentam o processo inflacionista com medidas demasiado abrangentes de apoio de famílias e empresas.
Contudo, a incerteza é elevada num contexto internacional que continuará marcado pela guerra na Europa – havendo o risco de que escale ainda mais, podendo provocar novos aumentos dos preços da energia, até porque há ainda que assegurar o fornecimento de energia para este ano, sobretudo para o próximo inverno, e evitar racionamentos, o que é incerto – e por tensões geopolíticas muito fortes, nomeadamente entre os Estados Unidos e a China (luta pela hegemonia mundial), enquadradas num processo de alteração das relações internacionais exacerbado pela guerra, marcado pela formação de dois blocos antagónicos, um constituído sobretudo por países democráticos e o outro sobretudo por autocracias, o que poderá penalizar fortemente os fluxos internacionais de comércio e investimento.
Teme-se que esse processo se possa agravar e tornar irreversível – marcando um choque de oferta global de caráter prolongado, que elevará a inflação – se não houver um fim breve para o conflito, o que atualmente é um cenário longínquo, assistindo-se, pelo contrário, a um reforço dos meios no teatro de guerra por parte da Rússia e Ucrânia (que depende do auxílio dos países aliados, sobretudo da NATO), o que pode ser entendido como uma nova escalada, embora um eventual reequilíbrio de forças possa ser necessário para se retomarem as negociações.
Em sentido contrário, o fim abrupto da política de zero casos Covid-19 pelas autoridades chinesas, no final de 2022 e início de 2023, poderá permitir uma normalização gradual da atividade económica na China e mitigar as tensões inflacionistas a nível global (no fundo, uma reversão de parte do choque de oferta negativo observado desde 2020). Contudo, tal dependerá da manutenção de uma conjuntura de comércio mais ou menos normal, que poderá ser prejudicada pelas tensões protecionistas e geopolíticas, em particular com os Estados Unidos (disputa de Taiwan e medidas protecionistas da Administração Biden, que continuou a política de Trump).
As tensões protecionistas começam a emergir também entre os Estados Unidos e a União Europeia, a propósito do inflation Reduction Act dos Estados Unidos (legislação adotada em agosto de 2022), orientado para a redução de preços e transição climática norte-americana, mas com uma cláusula “buy american” que penaliza as empresas europeia, tendo levado a Comissão Europeia a responder com uma proposta de flexibilização das regras de auxílio de estado na área climática, o que, por sua vez, levanta problemas de equidade entre Estados membros da União Europeia com maior e menor margem orçamental, caso não sejam adotados mecanismos corretores em tempo útil (isto porque a proposta de um fundo europeu para corrigir estes problemas terá ainda muito caminho a percorrer e não será pacífica).
Dependendo de como os Estados Unidos e a União Europeia se entenderem nesta e noutras matérias, como nas importações de gás natural liquefeito norte-americano pela União Europeia ou mesmo no apoio à Ucrânia, poderá haver impactos também na inflação na União Europeia.
A médio e longo prazo, se for possível evitar conflitos e manter um funcionamento regular e sem restrições dos fluxos internacionais de comércio e investimento (como sucedeu até há poucos anos), a existência de alguma inflação (baixa, dentro das metas dos bancos centrais) e a normalização da política monetária (com taxas de juro positivas, mas não demasiado elevadas) serão fatores positivos, contribuindo para reduzir os excessos e volatilidade dos mercados financeiros e conduzir a uma melhor alocação de recursos, incluindo o estímulo à poupança para os aforradores mais avessos ao risco.