Óscar Afonso, Dinheiro Vivo

Em termos estruturais, a aceleração da globalização patrocinou a descida dos níveis de inflação a nível mundial, pelo que medidas protecionistas tendem a representar riscos de retrocesso.

O patamar de globalização alcançado, a crise de dívida soberana europeia 2009-2018, a redução das expectativas de inflação e os receios de deflação levaram os principais bancos centrais a reduzir as suas taxas de juro diretoras para próximo de zero através de novas abordagens, com realce para a adoção de programas massivos de compra de ativos, sobretudo de títulos de dívida pública. Porém, esta estratégia encerrava riscos inflacionistas, consubstanciados nos anos mais recentes.

Assim, em 2020, assistiu-se ao reforço da compra de dívida dos bancos centrais para evitar os efeitos recessivos das medidas de confinamento, que as autoridades dos vários países foram obrigadas a tomar para travar a disseminação da pandemia por covid-19. A inflação começou então subtilmente a subir devido à subjacente expansão monetária e às políticas orçamentais de apoio à procura, quando a oferta global de bens e serviços se reduziu em face das restrições de contacto social, o que levou a um retrocesso da globalização. Após o levantamento gradual das restrições da pandemia, a subida da inflação começou a acentuar-se, já que a oferta recuperou mais devagar do que a procura, estimulada pelas políticas monetária e orçamental e pelo dispêndio das poupanças acumuladas durante a fase mais crítica da pandemia. As cotações das matérias-primas e energia começaram também a disparar quando começaram as movimentações de tropas russas perto da fronteira da Ucrânia. A efetivação da guerra engrossou os problemas nas cadeias de valor globais. O resultado foi a subida da inflação para níveis que já não eram vistos há imenso tempo.

A resposta de política monetária foi uma subida historicamente rápida das taxas de juro, com os efeitos em termos de redução da inflação a fazerem-se sentir apenas na parte final de 2022. Os níveis de inflação contribuíram para a perda de poder de compra, o que, por sua vez, ajudou à redução da inflação. Contudo, a incerteza é elevada num contexto internacional que, muito provavelmente, continuará marcado pela guerra na Europa e por fortes tensões geopolíticas entre os principais blocos económicos. A médio e longo prazo, se for possível evitar conflitos e manter um funcionamento regular e sem restrições dos fluxos internacionais de comércio e investimento, a existência de alguma inflação e a normalização da política monetária serão fatores positivos.

Em termos de política nacional, assiste-se a um trade-off entre o apoio mais alargado a empresas (para travar o risco de encerramento de empresas mais frágeis face ao agravamento acumulado de custos, como energia e juros, além do pagamento das linhas de crédito covid, que começará a cair em força) e famílias (para travar a contestação social crescente, pois após a greve dos professores outras classes de funcionários públicos poderão seguir-se), e o efeito inflacionista e de deterioração das contas públicas provocado por essas medidas de apoio.

De facto, se as medidas do Estado para proteger as famílias e as empresas dos efeitos da inflação e subida de custos (respetivamente) não forem direcionadas sobretudo para os segmentos mais vulneráveis, poderão contribuir para mais inflação. Por outro lado, se as medidas de apoio às famílias não travarem a perda de poder de compra dos mais qualificados, os problemas de retenção e atração de talento agravar-se-ão ainda mais, acentuando o envelhecimento, a baixa produtividade e a capacidade de enfrentar novos desafios, incluindo os das transições digital e climática.

Após um efeito inicial positivo da inflação sobre as contas públicas, permitindo uma redução bastante significativa do rácio da dívida pública no PIB, o "dividendo" da inflação continuará a ser positivo em 2023, mas menor. O denominador do rácio contará com um menor crescimento do deflator do PIB e com uma variação real do PIB pouco positiva no cenário base, após um crescimento económico muito forte em 2022 (devido, em grande medida, à realização de consumo adiado usando as poupanças da pandemia e à forte retoma do turismo, impulsionado pela imagem de país seguro, longe da guerra, a que se junta a menor dependência energética da Rússia, em termos relativos). No numerador, a dívida poderá agravar-se (via défice) com o aumento da fatura com juros e a cedência do Governo a aumentos de despesa que sejam necessários para travar a contestação social e acudir às empresas em dificuldade, a par com o menor crescimento das receitas fiscais devido à travagem da economia, em particular do consumo, o que deverá penalizar a evolução do IVA, com forte peso na estrutura de receitas públicas.

Uma nota sobre a importância de os bancos comerciais aumentarem as taxas de juro dos depósitos (num contexto de subida geral das taxas de juro dos empréstimos), tendo em vista a reposição do salutar incentivo ao aumento da poupança dos aforradores com menor propensão ao risco, pois para já estão a direcionar-se sobretudo para os certificados de aforro, onde estão as taxas mais atrativas - o que pode ter um impacto negativo, pois o Estado tem sido um mau gestor dos recursos (veja-se a redução do investimento público como estratégia de consolidação orçamental nos últimos anos) e é preciso um aumento do investimento privado.

Será salutar o regresso à atividade tradicional de intermediação financeira e uma travagem no modelo de negócio assente em subidas das comissões (muitas vezes sobre serviços inexistentes).

Acresce que o aumento da poupança potencia o aumento do investimento e da produtividade, contendo os custos laborais unitários, e contraria o consumismo excessivo, contribuindo assim, tanto do lado da oferta como da procura, para menores níveis de inflação a médio prazo.