Ana Clara Borrego, Jornal i online

O Estado, enquanto proprietário de um imenso parque imobiliário devoluto e abandonado, grande parte do qual situado em zonas de carência habitacional, deveria começar por criar estratégias para “arrumar a própria casa”

Procurei resistir à atração de escrever sobre um dos temas mediáticos do momento, porém, que me perdoem os caros leitores, mas não resisti. Estou a referir-me ao arrendamento compulsivo proposto pelo governo no âmbito do programa “mais habitação”.

Como sabem, a referida proposta prevê o arrendamento forçado dos imóveis devolutos, quando haja procura para aquela tipologia de imóveis na zona onde se situam e o proprietário se recuse a arrendá-los voluntariamente. Prevê-se que fiquem excecionadas somente as seguintes situações: casas de férias e de emigrantes ou de pessoas deslocadas por razoes de saúde e razões profissionais ou formativas, casas cujos proprietários estejam num equipamento social como um lar ou estejam a prestar cuidados permanentes como cuidadores informais.

Nesta crónica não vou escrever sobre as questões de (in)constitucionalidade que a proposta levanta, pois sobre essas há quem já o tenha feito com maior propriedade e conhecimento do assunto. Há, porém, outras questões que se colocam em relação àquela proposta sobre as quais me apraz escrever, uma das mais evidentes é o facto de o Estado pretender transferir compulsivamente a responsabilidade social no foro habitacional para os proprietários privados.

Ademais, o Estado português está a fazer uso do velho provérbio que defende: “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. O Estado, enquanto proprietário de um imenso parque imobiliário devoluto e abandonado, grande parte do qual situado em zonas de carência habitacional, deveria começar por criar estratégias para “arrumar a própria casa”, antes de apontar o dedo aos privados, até porque, o Estado ao não dar o exemplo, na minha opinião, não tem autoridade, pelo menos moral, para o fazer.

Como diz o povo, o exemplo vem de cima…

Acerca da mesma proposta, há outra questão que me incomoda e que partilho com os caros leitores: caso um imóvel esteja devoluto e não esteja em condições de habitabilidade, havendo interesse no arrendamento compulsivo do mesmo, o proprietário vai ser “convidado” a fazer as necessárias obras, caso não as realize, será o Estado a fazê-las coercivamente, mais concretamente o município onde o imóvel se situe (a proposta prevê uma linha especial de crédito para os municípios, para este efeito); nestes casos, o proprietário, constitui-se, automaticamente, devedor ao Estado de uma dívida no valor das obras, a qual vai ser chamado a pagar (a proposta prevê que a dívida, também, possa ser paga pelas rendas geradas pelo imóvel).

Apresento-vos agora a minha inquietação/preocupação relativamente à situação que vos expus acima: e se o proprietário não puder pagar a dívida referente às obras suportadas pelo município e o imóvel não gerar rendas para amortizar a dívida? (para tal basta que o imóvel não consiga ser arrendado, ou sendo-o, o inquilino não pague as rendas ao Estado). O proprietário, nesses casos, pode ser forçado a entregar o imóvel ao Estado por conta da dívida das obras?! Se assim for, não estaremos perante uma espécie de expropriação?!

Caros leitores, considerando a lógica de “por e dispor” de propriedade privada pelo Estado que está subjacente ao projeto “mais habitação”, sou forçada a pensar que esta minha preocupação faz sentido.

Está em curso (até dia 10 de março) a consulta pública ao programa “mais habitação”, aguardemos pelas alterações ao mesmo, bem como para verificar se caem (ou são reajustadas) algumas propostas que nele constam. Caros leitores, caso pretendam participar na consulta pública devem entrar aqui e registar-se.