António João Maia, Expresso online
Uma organização será sempre um somatório de imperfeições
á uns dias fui desafiado para lecionar uma aula num curso de pós-graduação de compliance e gestão de riscos nas organizações sobre o estado da arte nas entidades do setor público relativamente a estas temáticas.
Aceitei o convite de imediato porque este é um tema que me interessa como cidadãos (e deste ponto de vista creio que o tema nos interessa a todos), e sobretudo porque trabalho com ele há quase três décadas. Inicialmente como investigador criminal da PJ e, nos últimos anos, como especialista na gestão e prevenção de riscos de fraude e corrupção nas organizações, e também como investigador e académico sobre estas questões.
Foi assim, com interesse e gosto, e sobretudo alicerçado nas referidas experiências profissionais e académicas, que avancei para a aula.
Comecei naturalmente por aquelas que tenho designado como as noções básicas, pois é sobre elas e com o propósito de garantir a sua concretização que me parece que tudo deve assentar.
Referi assim que, no essencial, a ética pode ser entendida como o reconhecimento de que as sociedades (qualquer sociedade) têm um conjunto de valores centrais que enquadram e conferem consistência às relações sociais entre as pessoas – no nosso caso, facilmente reconhecemos importância fundamental a valores éticos como a liberdade, a igualdade, a honra, a fraternidade, a justiça, e tantos outros.
A ética, assim entendida, existe para criar, regular e sustentar expectativas sobre o relacionamento adequado entre as pessoas, independentemente da sua posição social ou das suas circunstâncias sociais, económicas ou culturais. A ética estabelece e decorre de uma certa normalidade nas relações entre as pessoas.
Por sua vez, a conduta é, muito simplesmente, a atitude e sobretudo o comportamento, por ação ou por omissão, que cada um adota em cada circunstância da sua existência.
E a integridade, já se vê, é a noção que deriva das duas anteriores. É a conduta que traduz, concretiza, põe no terreno, os valores da ética. É a adoção de condutas de integridade que valida, confere sentido, significado e profundidade aos valores da ética, ou simplesmente aos valores éticos. De outro modo, ou seja, quando as condutas não concordam com esses valores e sobretudo quando chocam com eles, colocam os valores em crise e fazem-nos desacreditar da sua validade e até da sua existência. E se os comportamentos de natureza não-íntegra forem muito frequentes num determinado momento numa sociedade, os valores éticos sofrem uma erosão forte e podem mesmo tornar-se ocos. Perdem sentido e significado. Passam a existir, quando muito, “apenas” no plano discursivo, sendo utilizados como uma espécie de adornos para abrilhantar discursos de sessões solenes, com muitas palmas no fim, mas sem grande utilidade nem valor para lá dessa circunstância.
Referi depois que todos temos o dever da integridade e que ninguém está excluído desta responsabilidade. E este é um elemento fundamental.
A integridade depende em primeira linha de cada um de nós. Sim, digo bem, de cada um de nós. Não depende mais do meu colega, nem do meu superior hierárquico, nem do Diretor-Geral, nem do Secretário de Estado, nem do Ministro, nem do Primeiro-Ministro, nem do Presidente da República, do que depende de mim. Claro que também depende deles. E neste campo eles, pela posição que representam nos departamentos e instituições que lideram e pela maior exposição social em que se encontram, têm uma responsabilidade e um dever maior de integridade. Mas ninguém está isento deste dever e desta grande responsabilidade que é a integridade. Ninguém!
É bom reforçar esta perspetiva na medida em que é muito fácil apontar o dedo ao outro, seja ele quem for e independentemente da função que exerça ou da posição que ocupe. E, de uma maneira geral, todos nós fazemos isso sempre que há notícias de que alguém se revelou pouco íntegro. O outro é um alvo muito fácil. Mas a questão aqui é outra e é a seguinte – então e eu? Serei um exemplo adequado de integridade? Poderei melhorar a minha conduta no sentido de ser ainda melhor quanto à integridade? – Estas questão são fundamentais e, ou muito me engano, ou, o mais provável, é que poucos as façam perante a sua consciência. E, calhando, os que apontam o dedo a outros com particular veemência estão provavelmente entre os que menos se preocupam com tais questões. É assim a natureza humana, dirão muitos.
Esta deverá ser, referi aos alunos, a primeira grande preocupação a associar a qualquer política promotora de uma cultura de integridade numa organização. Induzir nas pessoas da organização – desde o dirigente máximo até aos trabalhadores frontline – este cuidado constante de autoavaliação sobre se as atitudes e condutas adotadas estão alinhadas com os valores éticos da organização e na procura de oportunidades de melhoria pessoal. Afinal todos os exemplos de integridade contam e afetam positivamente a cultura da organização. E as condutas contrárias afetam-na pela negativa.
Depois, numa segunda parte da aula, referi-me aos três pressupostos fundamentais para o exercício de uma qualquer função de natureza pública, política ou administrativa, indicando o seu significado, as fragilidades ou riscos inerentes e os cuidados de controlo que lhes podem ser associados. Os três pressupostos são os seguintes:
- Necessidade de se garantir a integridade na organização, ou seja, como se referiu no início, de todos se alinharem e adotarem condutas concordantes com os valores da ética da organização em qualquer circunstância. O risco associado a esta componente é naturalmente a opção por práticas de fraude e de corrupção, no limite mais gravoso, e também a presença de condutas indevidas, impróprias, incluindo os denominados atos de má-educação entre colegas, com a hierarquia, e com os próprios utentes. Um dos antídotos para esta componente compreende a elaboração, adoção e dinamização de códigos de ética e de conduta, com o propósito de identificar os valores éticos da organização, de alinhar as pessoas com esses valores e reforçar por esta via a cultura de integridade.
- Cumprir os critérios normativos, no sentido em que as tarefas funcionais a exercer por cada servidor público decorrem de um quadro legal e normativo. São as leis e as normas (diplomas, despachos e circulares internas de organização dos serviços) que estabelecem as funções de cada entidade de natureza pública (política ou administrativa) e, dentro delas, de cada unidade orgânica e, no limite, de cada servidor público. Por isso, o exercício de funções públicas não admite soluções que não estejam acauteladas pelo quadro normativo, nem, o que seria pior, que contrariem a própria lei ou o seu sentido (afinal de contas, “A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático”, como nos diz inequivocamente o texto da Constituição da República Portuguesa logo no seu artigo art.º 2º). Costumo referir, a propósito deste ponto, que a função pública não admite a possibilidade de soluções criativas e muito menos de invenções. O risco associado a esta componente é o incumprimento do quadro normativo, que pode ser doloso (intencional) ou negligente (por desconhecimento), mas que provoca sempre, pelo menos, dano na credibilidade e reputação das organizações perante as demais e sobretudo perante os cidadãos, que as traduzem muitas vezes com desabafos do tipo “Eles – referindo-se aos funcionários e às próprias organizações – nem sabem o que andam a fazer”. O antidoto aqui passa, entre outras medidas, pela criação e partilha de manuais de boas práticas ou manuais de procedimentos, documentos referenciais que devem traduzir as boas experiências do passado na execução de cada tarefa da organização.
- E o terceiro pressuposto traduz-se na exclusividade ao serviço do interesse geral, ou seja, ao serviço do superior interesse do cidadão. Este prossuposto é o que suscita o risco de existência de conflitos de interesses na gestão pública. Os conflitos de interesses são provavelmente a porta maior que leva à fraude e à corrupção, ou seja, à adoção de condutas menos íntegras, com gravidade maior (corrupção e apropriação de bens públicos) ou menor (irregularidades disciplinares), mas sempre em prejuízo da credibilidade e da confiança sobre as instituições e sobre o Estado e as suas funções. O antidoto para os conflitos de interesses compreende diversos instrumentos com âmbitos, propósitos e metodologias próprias. Os planos de prevenção de riscos corrupção e infrações conexas, numa perspetiva preventiva, de antecipação realista dos riscos associados a cada função da organização e a adoção de medidas de controlo e prevenção potencialmente adequadas, e os canais de denúncia, numa perspetiva de despiste e posterior punição de ocorrências de fraude e corrupção que estejam a ocorrer dentro da organização, são instrumentos importante e potencialmente uteis neste âmbito.
E foi precisamente este terceiro pressuposto que nos conduziu ao ponto central da aula, o estado da arte que o setor público tem evidenciado relativamente à promoção da integridade e ao controlo da corrupção nas suas estruturas.
E quanto a esta questão, importa dar nota que desde 2009 que o Conselho de Prevenção da Corrupção tem vindo a emitir recomendações sobre a elaboração e adoção de planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas, de códigos de ética e conduta e de medidas de controlo e prevenção de conflitos de interesses nas organizações de natureza pública.
Em sequência dessas recomendações, pelo menos cerca de 1400 entidades públicas têm vindo a produzir e adotar instrumentos dessa natureza com os referidos propósitos. Importa porém referir que algumas entidades dispõem destes instrumentos, que inclusivamente publicitam nos seus sítios da internet, mas cuja dinamização interna se revela escassa, nalguns casos mesmo nula. Há, por exemplo, entidades cujos funcionários desconhecem a existência destes documentos, o que é no mínimo um dado estranho uma vez que um código de ética e de conduta e um plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas incluem medidas concretas de conduta e de prevenção que têm de ser cumpridas pelos próprios. Para isso será necessário que as conheçam e, sobretudo, que saibam para que servem. De outro modo, essas medidas não são operacionalizadas. Não saem do papel.
Noutras casos referem que tomaram conhecimento da existência destes documentos por correio eletrónico que lhes foi endereçado, no qual era indicada a necessidade de ler e conhecer os documentos, afirmando depois que essa leitura acabou por nunca se realizar por falta de tempo.
Mas é também necessário afirmar que existem entidades que envolvem os dirigentes intermédios e superiores na elaboração dos documentos, promovendo depois ações de formação e sensibilização de modo a dar a conhecer e a explicar a todos os funcionários os propósitos e conteúdos de tais documentos e o que se espera de cada na sua execução.
Agora, como sabemos, encontramo-nos sob o Regime Geral de Prevenção da Corrupção, criado pelo Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de dezembro, que genericamente prevê que as organizações, publicas e privadas, com mais de 50 trabalhadores têm obrigatoriamente (sob pena de sanção pecuniária) de adotar um conjunto de cinco medidas de cuidado:
- Código de ética e de conduta – instrumentos que identifiquem os valores éticos das organizações e as indicações de conduta esperadas de todos os trabalhadores que nelas exercem funções. São instrumentos com o propósito específico de reforçar a cultura de integridade nas organizações.
- Plano de prevenção de riscos – instrumentos com propósitos preventivos que devem permitir identificar os riscos relativamente a cada unidade orgânica e as medidas de controlo e prevenção potencialmente mais adequadas para a sua prevenção.
- Canal de denúncias interno – instrumento com o propósito de despistar situações de fraude e corrupção que possam estar a ocorrer na organização ou que a envolvam em situações dessa natureza e que de outro modo talvez não fossem detetadas. Trata-se de uma medida de desocultação da fraude e da corrupção, fenómenos reconhecidamente com uma natureza oculta.
- Programa de formação para a integridade – instrumento com o propósito de envolver os trabalhadores das organizações (todos os trabalhadores, desde os dirigentes de topo até aos designados funcionários frontline) sobre as políticas e os instrumentos de promoção da integridade, de prevenção de riscos e de apresentação de denúncias.
- Responsável pelo cumprimento normativo – com o propósito de coordenar no terreno a articulação, adoção e execução dos diversos instrumentos de promoção da integridade, de prevenção de riscos e despiste de ocorrência e das medidas neles previstas.
Trata-se, a meu ver, de um conjunto de medidas interessante e potencialmente de grande utilidade. Porém esse potencial de utilidade apenas poderá concretizar-se se forem dinamizados de forma adequada e articulada. De outro modo muitas organizações poderão continuar desprotegidas, ainda que disponham dos referidos instrumentos que a lei determina.
Algumas das principais limitações que podem explicar alguns fracassos na adoção dos referidos instrumentos compreendem:
- Cumprir a lei, mas…., no sentido em que o cumprimento da lei é necessário, com vimos anteriormente, mas as organizações não podem ficar só por este propósito. Se assim for – e existem alguns sinais de que assim poderá continuar a ser – as organizações vão muito simplesmente ao mercado adquirir os instrumentos requeridos e publicitam-nos nos seus sítios da internet para mostrar claramente que cumprem a lei, mas pouco ou nada mais fazem para os dinamizar no terreno, para os levar ao conhecimento dos seus trabalhadores.
- Envolver as pessoas (elemento particularmente importante), na medida em que a identificação dos valores éticos do código de ética e de conduta das entidades, bem como dos riscos de fraude e corrupção e correspondentes medidas preventivas, são mais realistas e fidedignos se resultarem do contributo de todos dentro da organização, e que serão mais facilmente postos em prática por todos, na medida em que cada um sente e poderá afirmar convictamente que “estes são os nossos valores institucionais porque eu fui envolvido e contribui para a sua identificação” e “estes são os riscos de fraude e corrupção a que as nossas tarefas estão expostas e que para os prevenir temos de por em prática estas medidas de prevenção, que também resultaram do meu contributo”.
- Sinais de forte envolvimento da gestão de topo (outro fator de grande importância e que se traduz na denominada estratégia de envolvimento top-down) no sentido de mobilizar as estruturas hierárquicas e os trabalhadores relativamente à utilidade de se envolverem ativamente e de forma construtiva na elaboração dos instrumentos de promoção da integridade e de prevenção de riscos da organização. Sem um sinal forte da gestão de topo, acompanhado de exemplos adequados de integridade, é mais difícil envolver as pessoas na criação e dinamização dos instrumentos de promoção da integridade e prevenção de riscos.
- Elaboração dos instrumentos promotores da integridade (código de ética e de conduta) e de prevenção de riscos (plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas) com a colaboração e envolvimento da hierarquia segundo uma lógica ascendente dentro organização (a denominada lógica bottom-up), culminando com a colaboração e participação ativa da própria gestão de topo. Uma dinâmica desta natureza permite reforçar o sentimento salutar de uma organização com a qual todos se identificam por se sentirem úteis e envolvidos nos projetos de gestão.
- Importância de uma coordenação efetiva entre os diversos departamentos orgânicos na elaboração, divulgação, implementação e execução dos instrumentos e das medidas neles previstas, sob a orientação do responsável pelo cumprimento normativo e o apoio do departamento de auditoria interna ou equivalente, sempre que exista, e com os operadores do canal de denúncia, incluindo para apoiar os trabalhadores que revelem alguma dificuldade ou dúvida de natureza ética ou no exercício das suas funções e para acorrer rapidamente a situações de irregularidades ou de fraude e corrupção que sejam sinalizadas ou denunciadas.
É claro que é utópico acreditar que algum dia existirá uma organização perfeita. Afinal as organizações são feitas e operadas por pessoas, e a imperfeição natural das pessoas estará sempre (sempre!) dentro das organizações. Deste ponto de vista, uma organização será sempre um somatório de imperfeições.
Mas fazer pouco ou nada para promover e dinamizar uma cultura organizacional de integridade, de controlo, prevenção e despiste de risco é claramente facilitar a vida a pessoas que andem nas organizações muito mais interessadas na satisfação dos seus interesses do que propriamente alinhadas com o interesse geral.
E, claro, o cidadão, o verdadeiro e único interessado em que toda esta estrutura funcione tão bem quanto possível, justifica todos os esforços e cuidados de melhoria das instituições públicas, incluindo sobretudo nas componentes da ética e da integridade.