Miguel Viegas, OBEGEF
União Europeia cede às pressões dos Estados Unidos e retira proposta de taxar o digital. Será que chegámos finalmente a um consenso na OCDE ou estamos perante mais uma manobra dilatória?
A necessidade de adaptar a máquina fiscal em função da nova realidade digital é uma evidência. Perante o impasse da comunidade internacional, a União Europeia avançou com um projeto próprio de criação de uma taxa digital destinada a mitigar o quadro de impunidade fiscal em que vivem os gigantes do digital. Eis senão quando, por intervenção dos Estados Unidos da América, e partindo de um alegado consenso na OCDE sobre uma taxa mínima de imposto à escala mundial, a União Europeia voltou a colocar o seu projeto na gaveta. Estaremos nós perante mais uma manobra dilatória ou vamos ter avanços concretos no curto prazo?
A generalidade dos sistemas de tributação foi concebida no século XX. Assentam em dois pilares fundamentais: o estatuto de estabelecimento estável que legitima o nexo fiscal e o princípio da plena concorrência que impede a manipulação de preços nas transferências intra-grupos. Com a digitalização da economia, estes dois pilares praticamente ruíram. Na economia digital predominam os ativos imateriais. A sua domiciliação decorre de um simples exercício de arbitragem fiscal. Por outro lado, estes ativos imateriais geram custos e receitas que dificultam, ou tornam mesmo impossível, a aplicação do princípio de plena concorrência. Quando uma multinacional atribui um custo por conta de utilização de uma marca cujo capital se encontra sediado num paraíso fiscal, não existe em rigor nenhum termo de comparação por forma a verificar se este custo está ou não alinhado com os preços de mercado. Aí está a receita perfeita para o “profit shifting”.
Este problema está identificado há muito no seio da comunidade internacional. A OCDE tem atualmente uma proposta baseada em dois pilares. O Pilar Um propõe uma redistribuição dos lucros acima de uma determinada margem em função de critérios económicos, evitando assim a concentração artificial de lucros nos paraísos fiscais. O Pilar Dois pretende estabelecer uma taxa mínima de imposto sobre os lucros à escala internacional. O problema é que ainda não foi possível obter o consenso necessário para aplicar a proposta. Perante o impasse, e sob a necessidade urgente de obter novas receitas para pagar o empréstimo associado ao instrumento “NextgenerationEU” a União Europeia conseguiu obter o consenso interno para aprovar a sua proposta de criação de uma taxa digital. É neste contexto que surge a notícia de um acordo do G20 firmado no mês passado em Veneza sobre um novo quadro fiscal mundial incluindo uma taxa mínima de imposto de 15% sobre o lucro das empresas. Mas vale a pena reter duas declarações das conclusões finais do encontro. A primeira insta o Grupo Inclusivo da OCDE a apresentar “um plano detalhado para pôr em prática os dois pilares da proposta em outubro para a próxima cimeira do G20”. Ou seja, ainda há trabalho a fazer. A segunda “convida todos os países a desmantelar as taxas digitais existentes consideradas com discriminatórias por parte dos Estados Unidos e abster-se de implementar medidas similares no futuro”.
O fim do episódio é conhecido. A União Europeia meteu a taxa digital na gaveta. Desta forma os gigantes digitais continuarão sem pagar impostos apesar de realizarem milhões de lucros na Europa. Acresce que o reembolso dos 750 mil milhões de euros do NextgenerationEU continua assim sem resposta, podendo comprometer o próximo orçamento plurianual da EU pós 2027. Vamos ver o que nos reserva o próximo outono.