António João Maia, Expresso online (123 13/05/2021)

 

Os denominados canais de denúncia ou de reporte têm sido crescentemente considerados como modos adequados para promover a recolha de elementos informativos sobre a fraude e a corrupção

A fraude e a corrupção são fenómenos que pela sua natureza se apresentam tendencialmente ocultos.

Aqueles que os praticam têm todo o interesse em garantir essa ocultação. Por isso, explorando por vezes uma elevada capacidade e frieza de raciocínio, tecem e adotam planos de ação que incluem todos os cuidados para manter essas suas opções a recato de olhares e testemunhos de terceiros, ou seja de possíveis delatores, para lá de ocultarem e se desfazerem das provas desses atos.

Se tiverem sucesso nessas operações de cuidado – e o que se conhece do fenómeno faz presumir que esse sucesso seja alcançado numa grande parte das vezes –, reduzem substancialmente os riscos de serem objeto de uma suspeição e, correlativamente, de uma punição. Os estudos que se conhecem sobre o fenómeno caracterizam-no precisamente por apresentar elevadas taxas de “cifras negras”.

E será pelo facto de o fenómeno apresentar estas características que se tem considerado importante e necessário o desenvolvimento e a adoção de medidas que permitam um maior grau de aproximação a ocorrências desta natureza. Estas medidas têm em vista potenciar a desocultação da fraude e da corrupção, de modo a que a perceção e o sentimento de impunidade sejam menores.

O conhecimento de elementos informativos que sejam transmitidos por quem exerce funções em contextos de maior proximidade com estas práticas, ou também por conhecer de perto aqueles que a elas se dedicam, é considerado uma forma de promover essa aproximação ao fenómeno e aos que o praticam.

Por isso os denominados canais de denúncia ou de reporte têm sido crescentemente considerados como modos adequados para promover a recolha de elementos informativos sobre estas práticas.

A adoção, em 2019, pela União Europeia da Diretiva sobre o whistleblowing surge precisamente neste enquadramento e com este propósito.

Numa perspetiva muito alargada, o documento vem propor aos Estados-membros a obrigatoriedade da criação de canais desta natureza relativamente a situações anómalas, de fraude e corrupção, bem como de outras violações ao Direito da União Europeia.

Nos termos da Diretiva, estes canais devem ser criados tanto nas instituições públicas como nas privadas e devem incluir cuidados de proteção (como a garantia do posto de trabalho e a inexistência de qualquer forma de pressão) relativamente a quem apresente elementos informativos através desses canais – os denunciantes – em matérias como: a contratação pública; o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo; a segurança dos transportes, do ambiente e da saúde pública; a proteção de dados pessoais e dos sistemas de informação; ou ainda quando estejam em causa interesses financeiros da União, de entre outros.

Esta diretiva, que os Estados-membros têm adotar até ao próximo dia 17 de dezembro, requer, para lá de outros cuidados, que estes canais de reporte existam e sejam operados internamente em cada instituição por departamentos ou pessoas com características específicas, designadamente: que assegurem o tratamento e a confidencialidade das informações colhidas; que preservem a identidade das pessoas envolvidas, tanto do autor como dos visados na denúncia, pelo menos até ao esclarecimento da mesma; que permitam a possibilidade de manter contacto com o denunciante no sentido de se permitir a recolha de elementos informativos adicionais, mesmo nos casos em que haja opção pelo anonimato; que garantam a análise e o tratamento de todos os elementos apurados relativamente a cada denúncia apresentada; e que, no final da averiguação, garantam o acesso à informação e aos procedimentos por todos os que neles estiveram envolvidos.

Trata-se de uma medida mais no sentido de prevenir a fraude e a corrupção nas organizações.

Será por certo objeto de muitas criticais, sobretudo por uma certa associação à ideia ainda muito subsistente entre nós dos métodos pidestos que promoviam a existência dos denominados “bufos” nas instituições, e que, de entre outros, tinham o efeito de destruir a confiança das pessoas nos seus contextos de trabalho e também sobre o regular funcionamento das instituições.

Estou em crer que uma medida desta natureza terá os seus méritos e capacidades quanto à aproximação ao fenómeno, como se pretende.

Porém, para que esse potencial não se perca logo de partida, para que não haja uma espécie de subversão da medida, importa cuidar muito bem da sua adoção, designadamente de ser muito bem calibrada e afinada de modo a evitar eventuais tentações de utilizar a informação colhida para processos e “jogos de poder”, ou para promover o tratamento diferenciado dos colaboradores nas instituições.

Por outro lado, a adoção de canais de denúncia deve ser acompanhada de um processo muito claro e transparente de explicação relativamente à sua existência, ao modo como funcionam e ao que todos podem e devem esperar deles.