José António Moreira, Expresso online (122 05/05/2021)

 

 

Conta-se que pelo início dos anos 70 a TAP lançou um concurso de ideias para a recolha de uma frase que sintetizasse o que era a empresa e o seu negócio. Os concorrentes deveriam submeter a respetiva proposta gravada numa cassete. O Joaquim, um nortenho de quatro costados, depois de muitos rascunhos, fixou no papel: “A TAP não anda, voa!”. Depois de várias gravações, enviou a concurso o resultado que considerou mais bem conseguido. O que o júri ouviu, quando reproduziu a gravação, foi “a TAP não anda boa!”, naquele sotaque inconfundível do Norte, em que os “v” dão lugar aos “b”.

Não se sabe se o caso é verídico, mas também não interessa. O importante é que no presente a TAP não anda boa e o problema não é de sotaque, mas de debilidades concretas que a passagem do tempo exacerbou.

Na semana passada a empresa mereceu atenção especial dos media, que fizeram eco dos seus prejuízos de 2020, no montante de 1.230 milhões de euros. Apesar da grandeza do número, não houve ondas de choque. Possivelmente porque os contribuintes estão adormecidos, insensíveis às chorudas faturas que regularmente lhes vão chegando para pagamento; ou porque o ministro Pedro Nuno Santos, desdobrando-se em entrevistas, terá atenuado o impacto. Quer-se crer que será mais pela primeira das razões, pois o discurso do ministro não deveria iludir ninguém, nem os mais distraídos, com a sua repetição “ad nauseaum” que “Deixar cair a TAP era abdicarmos de €3 mil milhões de exportações anuais e de €1,3 mil milhões de compras a mais de 1.000 empresas nacionais”, sem nunca explicar (e ninguém lho perguntar) qual é o custo suportado para obter tal proveito. Um discurso que, no mínimo, se pode considerar enviesado, pois um passado de constantes resultados negativos mostra que a TAP (por via dos contribuintes) sempre “pagou para funcionar”.

Analisar as contas de 2020 sem se conhecer o Plano de Reestruturação – e mais ainda o parecer da Comissão Europeia sobre o mesmo – é exercício com pouco ou nenhum sentido, pois não se consegue antecipar o que será o futuro da empresa, nem no curto prazo. Uma coisa é certa: a TAP está mal. Veja-se o parecer do Revisor de Contas – entidade que, supostamente, conhece o dito plano – iniciado com a apresentação de uma “incerteza material relacionada com a continuidade” da empresa.

Mesmo neste contexto de incerteza extrema, o relatório e contas de 2020 sugere duas reflexões: a primeira parte do montante dos juros suportados, 245 milhões de euros. É um sinal de perigo extremo. Num tempo de juros anormalmente baixos, o elevado peso destes na estrutura de custos reflete o excessivo endividamento da empresa, que metaforicamente se pode olhar como uma bomba-relógio pronta a explodir quando o ciclo de juros baixos se inverter. Muito do que se lê e ouve sobre a recuperação da empresa gira em torno dos cortes no pessoal, mas nada sobre o corte do endividamento. No entanto, este parece ser componente de sucesso tão ou mais importante do que os gastos com o pessoal.

A segunda reflexão, indiretamente, acaba por reconduzir também ao excessivo endividamento. O prejuízo de 1.230 milhões de Euros é um montante elevadíssimo, cerca de um décimo da “bazuca” atualmente vendida como a resolução dos problemas nacionais. Porém, se esse número fosse (apenas) 1.000 milhões a reação da sociedade (dos medias, em particular) teria sido diferente? Crê-se que a resposta a esta pergunta é negativa. Está, pois, criado o ambiente propício para um “big bath”, uma atuação tendente à manipulação da informação financeira,

que visa refletir no resultado do ano corrente tudo o que de negativo se possa refletir, de modo particular componentes que iriam aparecer em anos futuros; bem como adiar para registo futuro componentes positivas que deveriam ser registadas no ano corrente. Deste modo, depois do choque provocado pelo resultado do período, está aberto o caminho para afetar positivamente os resultados futuros, mostrando desempenhos melhores do que os efetivamente se verificarão.

No caso concreto em análise, o aspeto mais visível neste domínio diz respeito à rubrica de “impostos diferidos ativos”. O prejuízo de 2020 poderá ser deduzido aos lucros obtidos pela empresa nos 10 anos seguintes, permitindo uma poupança fiscal de cerca de 250 milhões de euros. As normas contabilísticas possibilitam que se registe essa poupança no ano corrente, melhorando o resultado líquido, desde que exista uma probabilidade elevada de, no referido horizonte temporal, a empresa ter resultados antes de impostos positivos para poder absorver os prejuízos em causa (no caso seriam cerca de 1.500 milhões em 10 anos). Não ter registado essa poupança foi uma decisão da administração eminentemente subjetiva. A justificação: “não foram reconhecidos os respetivos ativos por impostos diferidos tendo em consideração a sua magnitude e a extensão do horizonte temporal para efeitos de recuperação dos mesmos …” (p.73). Se tivessem optado pelo reconhecimento o prejuízo teria sido de (apenas) 1.000 milhões.

Cenários possíveis para interpretar esta decisão: i) a administração adotou uma atitude conservadora, tendo em conta a incerteza quanto aos resultados futuros; ii) a administração opta pelo ”big bath”, criando uma “reserva oculta” de 250 milhões de euros que, em qualquer altura, durante esse horizonte de 10 anos e existindo a expetativa de resultados positivos, pode ser refletida no resultado do(s) período(s), aumentando-o.

O leitor formará o seu juízo, escolhendo o cenário que julgar mais pertinente. Qualquer deles é preocupante: seja a manipulação do resultado do período; seja uma verdadeira decisão conservadora por parte da administração. Com efeito, se este último for o cenário plausível significa que, no referido horizonte temporal, não se espera que a empresa gere resultados em montante relevante, o que condiciona a sua capacidade para reduzir significativamente o endividamento e tende a tornar a presente reestruturação em mais um paliativo.