António João Maia, Expresso online (112 24/02/2021)
O que a realidade está a demonstrar é que sob pressão revelamos mais facilmente a nossa essência, afirma António João Maia, a propósito dos sinais que vamos vendo um pouco por todo o lado relativamente ao modo como se está a processar a distribuição e o acesso por todo o mundo às vacinas da covid-19
Sob pressão revelamos mais facilmente a nossa essência.
E de que outro modo poderia ser?
De facto, e bem vistas as coisas, ainda que por vezes seja difícil perceber, ou querer perceber, ou mesmo quando se concede o benefício da dúvida, a verdade é que chegamos sempre ao que efetivamente somos. Iguais a nós próprios.
Como diz um amigo meu, é fácil enganar muitas pessoas durante pouco tempo. É até relativamente fácil enganar algumas pessoas durante algum tempo. Mas não é nada fácil enganar uma só pessoa que seja durante o tempo todo.
A essência da nossa natureza, o verdadeiro eu, acabará sempre por se revelar. Por nos revelar.
Vem esta nota de enquadramento a propósito dos sinais que vamos vendo um pouco por todo o lado, e que receio venham muito provavelmente a agravar-se com o decurso dos próximos tempos, relativamente ao modo como se está a processar a distribuição e o acesso por todo o mundo às vacinas protetoras do vírus da covid-19.
Ou, para ser mais claro, ao modo como alguns revelam não ter qualquer pejo, nem vergonha, para usar um termo mais mundano e também mais apropriado, em passar por cima de tudo e de todos – sobretudo daqueles que, por diversas vicissitudes, estão, ou deveriam estar, na primeira linha da vacinação, como sejam os mais idosos e alguns perfis profissionais – para alcançar rapidamente esse estado de imunidade que a vacina promete.
Atitudes desta natureza estão muito próximas do que podemos apelidar como o “espírito da corrupção”. Porque a corrupção é simplesmente isto. Prevalecer-se da posição social de destaque que se ocupa ou de um poder que se exerce num determinado contexto, para alcançar, de modo fraudulento, contrário às expectativas e às normas, propósitos ou benefícios por todos expectáveis e que, de modo regular, só seriam alcançados em momento posterior. É o perfil que em bom português se conhece como o “Chico-esperto”.
Poder-se-á afirmar, como de certo modo é argumentado pelos próprios envolvidos nestas situações, que não existe aqui nenhum problema, uma vez que o objetivo do processo é propiciar a vacina a todos. E que, portanto, deste ponto de vista, ninguém ficará prejudicado uma vez que chegará o momento de cada um para ser vacinado.
É verdade que assim é, que cada um terá o seu momento para ser vacinado.
Porém, se todos deitarmos mão das possibilidades que tenhamos, mais ou menos claras e mais ou menos lícitas, para acedermos à vacina logo que possível e não de acordo com os critérios de distribuição, rapidamente entramos na histeria do “salve-se quem puder”. Da desconfiança sobre a validade e utilidade dos critérios e até sobre a sua necessidade. Sim, numa lógica do “salve-se quem puder”, os critérios deixam de fazer sentido, não servem para nada. E os mais vulneráveis ficam simplesmente à mercê da sua sorte, ou da sua capacidade para entrar nesta guerra, que é como dizer, das armas de que disponham e da capacidade para as utilizar.
O grande problema é que tudo isto é contrário, e muito, aos critérios basilares e estruturantes da vida em sociedade como a concebemos e conhecemos.
É verdade que não existem sociedades perfeitas, nem pessoas perfeitas – o que é uma sociedade perfeita? E uma pessoa perfeita? –, mas o contexto de grande pressão em que a pandemia mergulhou o mundo parece estar a trazer ao de cima alguns dos piores traços da natureza humana – o individualismo, o egoísmo e a “lei do mais forte”. Os traços que a evolução da vida em sociedade deveria supostamente permitir controlar com alguma facilidade.
Em momentos de maior pressão, a questão suscita-se e renova-se:
Será esta a nossa verdadeira natureza?
Provavelmente é.
E o que a realidade está a demonstrar é que sob pressão revelamos mais facilmente a nossa essência.
Nestas circunstâncias, para que a coesão social continue a ser uma realidade, a sociedade tem de continuar a dispor e a aplicar, de forma mais evidente, mecanismos de censura e de punição sobre os infratores.
Se o desafio de 2020 foi alcançar a vacina contra o vírus da covid-19, e para tanto foi de extrema importância a capacidade de união e entreajuda revelada pela comunidade científica, como vimos em 2021, o ano da esperança com sinais de inquietude e em Memória de 2020 – o ano da saudade e a esperança no futuro, a questão que se suscita para 2021 é se a comunidade internacional consegue manter a mesma capacidade de união e espírito de cooperação relativamente à partilha dessas vacinas à medida que sejam produzidas pelos laboratórios?
Como alerta Henrieta Fore, Diretor Executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em artigo recentemente publicado no Fórum Económico Mundial, o processo de vacinação é uma corrida entre nações que não pode ter vencedores. O “nacionalismo vacinal” ameaça minar a distribuição equitativa das vacinas. Veja-se, por exemplo o caso de Israel que apresenta já uma percentagem considerável da população vacinada, numa altura em que muitos países, sobretudo do grupo dos mais pobres, estão agora a receber as primeiras vacinas e que provavelmente alguns ainda não receberam nenhuma.