Mário Tavares da Silva, Expresso online (109 03/02/2021)

 

Impõe-se, desde já, e de forma vigorosa, combater e erradicar, também, a criminosa “vacina de favor”, desviada em fraude à lei para o amigo, compadre, por vezes sob o pífio e inaceitável argumento de alguns de que, pasme-se, não se planeou… Todos teremos a nossa hora para ser vacinados e, já agora, para morrer.

Por estes dias, andamos todos inquietos, em sobressalto, assustados e, em certa medida, apreensivos com o melhor e o pior que a natureza humana pode experimentar.

São dias estranhos, de dúvida, em que assistimos, impotentes, confesso, ao pequeno truque da vacina, ao amiguismo de café e chico-espertismo do costume, ao tão miserável salve-se quem puder.

Típico, infelizmente, por terras lusas e, no atual contexto, com maior ou menor expressão, visível um pouco por toda a parte.

A crise sanitária assume-se, também, infelizmente, como uma crise de valores, em que tudo, mas mesmo tudo, pode ser posto em causa…

É por isso que no processo de vacinação em curso urge, desde já, pacificar e não, como alguns tentam fazer, incendiar a planície.

É que, como todos bem sabemos de histórias pretéritas, numa planície que arde dificilmente se encontrará o tão almejado espaço para nos protegermos do vírus…

Sem que consiga perceber bem porquê, a pandemia e a vacinação que dá agora os seus primeiros passos, traz-me à memória aquele extraordinário apelo crístico que deveria, por estes tempos, constituir o nosso mais profundo e valioso guia existencial.

"Lembra-te, ó homem/ó mulher, que és pó, e ao pó hás de voltar" (cf. Gn 3, 19).

Desprovido, para muitos, de qualquer utilidade prática na sua vida, este alerta recorda-nos a nossa mais insignificante e primeva origem, o nosso destino de pó ou, enfim, a tremenda e avassaladora fragilidade que a todos nos espera, de dissolução e, a final, de morte.

Muitos esquecem, é certo, este maravilhoso e humilde ensinamento, como se a vacina da COVID 19, qual ouro medicinal dos tempos modernos e ungido de propriedades salvíficas nos conturbados dias que correm, os imunizasse de tão fatal destino.

Mas não.

Vã e triste ilusão a daqueles que persistem em ignorar que a vida é isso mesmo, algo de muito grandioso e, simultaneamente, um risco, um enorme, angustiante e incontrolável risco para o qual todos, sem exceção, são incondicionalmente convocados.

Por vezes, a nossa atitude imponderada serve apenas para travestir cobardemente uma miserável vulnerabilidade e uma indizível pobreza de valores.

Este vírus que nos acomete, invisível e letal, põe irremediavelmente em perigo a nossa pacata vida, impelindo-nos, frágeis e sem capacidade de reação, a desconfiar de todos os outros.

Não nos deixemos, pois, cair na tentação de julgarmos, ainda que por fugazes momentos, que estamos seguros.

A vacina traz o melhor e o pior de todos nós, cegando-nos e fazendo desta crise de saúde pública, uma crise também de valores, uma crise de ética nas relações humanas, convocando, nessa medida, os mais elementares e importantes valores civilizacionais que conquistámos ao longo da história da humanidade e em que pontifica, num lugar proeminente, o da dignidade da pessoa humana.

Temos, pois, neste contexto, que ser exigentes e, sobretudo, vigilantes na rápida identificação e deteção dos desmandos fraudulentos e eticamente censuráveis no processo de vacinação em curso, se necessário, criminalizando, de forma clara, esses “comportamentos legalmente desviantes”.

Este é um tempo em que não nos podemos iludir e, sobretudo, em que não devemos alinhar em demagogias que, refira-se, pouco ou nada acrescentam no combate à pandemia.

Assim, impõe-se, desde já, e de forma vigorosa, combater e erradicar, também, a criminosa “vacina de favor”, desviada em fraude à lei para o amigo, compadre, por vezes sob o pífio e inaceitável argumento de alguns de que, pasme-se, não se planeou…

Todos teremos a nossa hora para ser vacinados e, já agora, para morrer…

Lembro-me, a este propósito, de um filme que vi há algum tempo em que um grupo de jovens, sem que se perceba muito bem porquê, escapa à morte num aparatoso acidente ocorrido numa ponte, e no qual era suposto todos perderem aí a vida.

Depois, um a um, todos vão desfiando, num imparável acerto de contas com a morte, porque se há coisa que esta não gosta mesmo é de ser enganada….

Como diz a sabedoria popular, ela é certa, apesar da hora incerta.

Creiam-me os meus amigos leitores que passada a espuma dos dias, com vacina ou sem ela, tudo se resumirá, a final, a uma questão de tempo, pois como não me canso de dizer, lembra-te que és pó e que ao pó hás de voltar.