Marcus Braga, Jornal i
Quanto mais se confia, menos se controla. Quanto mais se controla, mais se confia.
Uma visão minimalista do fenómeno da corrupção, temperada por um certo clamor popular, pode indicar que tudo se resumiria a um agente público que tem um dever legal, e, pela sua fraqueza de caráter, sucumbiria à tentação com o objetivo de obter vantagens, e assim quebraria os seus compromissos legais e morais, dando origem a uma atuação corrupta. Na verdade, essa visão se faz bem presente nas falas, na visão hegemónica da corrupção como um problema moral de um indivíduo em particular.
Essa percepção, um tanto simplista do fenómeno da corrupção, conduz a uma conclusão: a de que então basta que o agente se mantenha firme no seu propósito integro, resista a tentação e a corrupção não ocorrerá. Desse modo, ações de sensibilização moral e de fomento de uma cultura de integridade seriam suficientes para que as relações entre o público e o privado se fizessem de forma ética. Uma visão que se caracteriza por um certo reducionismo na análise do fenómeno, que sendo complexo, envolve contextos de igual natureza.
Olhando inicialmente para esse indivíduo titular do ato corrupto, tem-se que a mente humana é complexa no que se refere a aderência a regras, e na década de 1950 já de tinha uma visão mais profunda desse problema, quando o sociólogo Donald Ray Cressey (1919 – 1987), ao entrevistar diversos defraudadores, construiu um paradigma chamado de “Triângulo da fraude”, o qual é suportado pela pressão decorrente de fatores pessoais; pela racionalização que torna o ato legítimo ao olhar do defraudador; e ainda, pela oportunidade, que reside nos conhecimentos do defraudador associados as fragilidades dos sistemas de controle administrativo.
O segundo quesito do triângulo da fraude, a racionalização, foi objeto de discussões recentes, no contexto dos estudos trazidos pelo economista comportamental Dan Ariely (1967-), que sopesa a ideia de um cálculo de custo versus benefício do ato corrupto promovido pelo agente com a motivação apresentada pela tensão entre o indivíduo querer olhar no espelho e se ver honesto, contraposta a vontade de se beneficiar da trapaça. Segundo esse autor, se conseguimos trapacear e ainda mantemos a nossa fama de probos, o incentivo é maior a manter a conduta ilícita. Não basta racionalizar, mas que essa racionalização seja absorvida pelos que nos cercam.
Ainda falando de clássicos, tem-se que o economista estadunidense Robert Klitgaard, estudioso do fenómeno da corrupção, traduziu, ainda na segunda metade do Século XX, a corrupção por meio de uma fórmula matemática (C=M+D-A), na qual a corrupção (C) é fruto do grau de monopólio (M) existente adicionado ao poder discricionário (D) dos decisores, subtraído da “accountability” dos processos, entendido ai os mecanismos de controle.
Ainda nos Estados Unidos, os estudos de Rose Ackerman na década de 1970 destacaram a ausência de incentivos para coibir as práticas corruptas como uma das suas causas, um argumento, curiosamente, um tanto contestado por Ariely. Mas o custo contraposto ao benefício de um ato corrupto ainda é um argumento forte na discussão do que ocorre no caso da corrupção, e explica, inclusive, a importância de mecanismos de controle, como a auditoria e a transparência.
Esses foram alguns exemplos de como a discussão da corrupção e as suas causas, é complexa, com aspectos administrativos, económicos, psicológicos, sociológicos e da própria política pública, não sendo possível adotar de forma hegemónica o reducionismo do nível do indivíduo e a sua formação moral. Do diagnóstico apresentado, nasce a profilaxia dos remédios, e no que se refere a corrupção, eles são complexos, e hoje há um certo consenso de que essa doença crónica será mitigada, mas não exterminada, por fazer parte da dinâmica das relações e das delegações nos processos relacionados a atuação dos governos.
Tudo isso conduz a uma visão mais pragmática da corrupção. De que ela é um risco inerente as atividades da organização pública, passível de se materializar, e que tem fontes culturais, mas também da própria estrutura organizacional, bem como de circunstâncias e articulações específicas. E como risco, uma possibilidade valorada pela sua probabilidade de ocorrência e pela magnitude do impacto nos objetivos, faz-se necessário pensar em mecanismos para reduzir este, trazendo a corrupção para níveis aceitáveis, pensando sempre no ónus das salvaguardas adotadas.
Aí surge uma palavra mágica nessa discussão. A confiança, na qual a abordagem trazida no presente artigo pretende inverter a sua lógica. Ao contrário de se atribuir a qualidade de confiante as pessoas escolhidas por critérios, as vezes preconceituosos ou subjetivos, para assim afastar a corrupção, o que se propõe é que a confiança seja construída pela visão de que os membros da equipe estão sujeitos ao risco de atos corruptos, e que precisamos de mecanismos adequados de prevenção, na linha estrutural de transparência, auditoria e controles; bem como na linha pessoal do perfil dos agentes e de promoção de uma cultura de integridade, para mostrar que a organização está tratando esse problema.
A confiança, a cultura ética, a formação familiar, é mais um fator que contribui com a redução do risco de incidência da corrupção, mas que até pela dificuldade de mensurar esses fatores e a sua eficiência, precisam ser acompanhados de outras medidas de caráter estrutural, para que não exista a surpresa da confiança demasiada, mas também o burocratismo de tudo controlar. Quanto mais se confia, menos se controla. Mas, quanto mais se controla, mais se confia.
Para isso, a corrupção precisa deixar de ser algo negado, para ser visto como um risco real das relações, e que precisa ser tratado adequadamente. E que organização confiável não é só a que não se tem notícia de atos corruptos, mas também aquela que demonstra adotar as medidas razoáveis para que isso aconteça, em especial pelas dificuldades de se detectar, por vezes, os atos corruptos no seu nascedouro. Organizações que parecem integras podem surpreender pela ocorrência de escândalos estrondosos, e as vezes o prejuízo é alto demais para se desconsiderar a reflexão aqui apresentada.
Bases sólidas para se resistir ao complexo fenómeno da corrupção superam a visão minimalista de tentações individuais, o que pode resultar em um moralismo de heróis contrapostos a vilões, nada mais distante das visões atuais da natureza humana. A efetiva prevenção vem da cultura, dos artefatos, mas também de estruturas e procedimentos, inclusive com transparência e submissão ao escrutínio externo, na boa e velha ideia de accountability, como medidas balizadoras, que impedem a corrupção de vicejar na organização.