Óscar Afonso, Expresso online (110 10/02/2021)

 

Vivendo em democracia, muitos pensam que estamos protegidos porque a maioria tem sempre razão. É mentira. Em Portugal, sem fé, a maioria dos cidadãos abstém-se de participar na democracia. Acresce que a história nos enche de exemplos de ditadores que ganharam eleições democraticamente.

Dois dos mais seminais economistas da atualidade, Daron Acemoglu e James Robinson, autores do já best-seller internacional Why Nations Fail, oferecem-nos também a notável obra The Narrow Corridor: States, Societies, and the Fate of Liberty. Nesta nova obra, os autores explicam como, em alguns países, a liberdade floresce e é próspera, apesar de ameaças, e porque, noutros países, se observa autoritarismo ou anarquia. O interesse está em compreender porque existem países democráticos entre as alternativas de autoritarismo e de anarquia. O objetivo passa, pois, por entender porque diferentes formas organizacionais originam diferentes resultados.

Em Why Nations Fail, Acemoglu e Robinson explicam-nos que os países prosperam ou falham devido às instituições que possuem. Os países bem sucedidos possuem “instituições inclusivas”, como direitos de propriedade assegurados e um verdadeiro Estado de direito acessíveis a todos os cidadãos. O poder exercido pela elite, via instituições, segue modelos criadores de valor que dão à sociedade mais do que dela retiram e, no processo, aumentam também a sua riqueza individual. É um win-win game em que todos ganham. Nestes casos, a elite serve-se do governo do Estado, entendido como a instituição à qual a sociedade confia os valores coletivos mais importantes, assume uma função de guardiã suprema dos valores referenciais que caracterizam a nação, e controla e administra a nação de modo que os impostos colhidos sirvam para maximizar o bem-estar social.

Pelo contrário, nos países com “instituições extrativas”, há uma elite que vive da exploração do resto da sociedade. A elite está comprometida com o aumento da riqueza individual à custa do valor criado pela sociedade, apropriando-se de mais valor do que aquele que cria – a elite é rentista. Propõe modelos de negócio baseados em monopólios, em tarifas protecionistas e em atividades subsídio-dependentes. Estes modelos são verdadeiros entraves ao progresso da sociedade, caracterizam-se por elevados níveis de corrupção, sobretudo nos financiamentos públicos. A elite serve-se do governo do Estado para que as instituições imponham um modo de funcionamento político, económico, social, e jurídico que transfere o esforço de todos, através do pagamento de impostos, para alguns; as instituições são, pois, “extrativas”, a favor da elite, e o rumo da nação é em direção ao falhanço.

Prosseguindo, no novo livro, Acemoglu e Robinson vêm alertar-nos para a necessidade de cuidar da liberdade, que, duradouramente, não vive fora de um contexto bem definido, de “instituições inclusivas”, e que deve, por isso, ser muito bem cuidado. O conflito entre o Estado e a sociedade, quando o Estado é representado por “instituições inclusivas”, cria o tal corredor estreito, desejável, em que a liberdade floresce.

Porém, na maioria dos lugares e na maioria das vezes, o Estado é representado por “instituições extrativas”, (i) deixa-se enfraquecer e não protege os indivíduos – caminha em direção à anarquia – ou (ii) torna-se tão forte que passa a autocrático – ruma para o despotismo. Em qualquer dos casos, quanto mais a situação se enraíza – anarquia ou despotismo –, mais os fortes dominam os fracos e mais se anula a liberdade.

As perspetivas de liberdade e prosperidade equilibram-se então entre dois extremos: a opressão estatal (despotismo), e a ilegalidade e violência que a sociedade frequentemente inflige a si mesma (anarquia). A liberdade e prosperidade surgem então quando há equilíbrio entre o Estado e a sociedade. Neste caso as pessoas estarão livres de violência, de intimidação e de outros atos humilhantes, e devem ser capazes de fazer escolhas livres sobre as suas vidas e de ter os meios para, sem ameaças, as realizar. A exigência passa, portanto, por uma luta contínua para estabelecer “instituições inclusivas”, abertas, que impeçam líderes autoritários e restrinjam tendências despóticas.

Como bem referem Acemoglu e Robinson, a liberdade não é projetada e não há garantia de que permaneça intacta, mesmo quando consagrada na lei. A história prova que o caminho para a liberdade é estreito e permanece periclitante através de uma luta fundamental e incessante entre a elite e a sociedade. Sair do equilíbrio significa entrar no caminho da desintegração da prosperidade e da segurança, e caminhar rumo à ruína em direção ao despotismo ou à anarquia. Existe apenas um caminho estreito que alguns países, principalmente no ocidente industrializado, conseguiram encontrar. Para que seja possível manter o equilíbrio desejado, as instituições têm de evoluir continuamente, à medida que a natureza dos conflitos e as necessidades da sociedade mudam.

E que lições decorrem daqui para Portugal?

Portugal é a prova provada de que o equilíbrio é instável. Reconquistada a liberdade em 1974, quando aderiu à então CEE, em 1986, já tinha falhado duas vezes – em 1977 e 1983 – e o atraso do país refletia-se nos baixos salários, na especialização em indústrias trabalho intensivas (têxtil e calçado), no baixo nível de capital humano, e na disparidade entre ricos e pobres e entre litoral e interior, com a inerente desumanização. Responsabiliza-se, e bem, o autoritarismo imposto por mais de 40 anos de ditadura como primeiro responsável.

Hoje, 35 anos depois da adesão à CEE, de “bazucas” de fundos comunitários e de mais um falhanço do país em 2011, a disparidade entre ricos e pobres e entre litoral e interior agravou-se, e os baixos salários apenas mudaram do trabalho rotineiro na indústria não competitiva para os serviços mal pagos nos call centers, nas caixas de supermercado, nos cafés e restaurantes, mas que agora empregam vários licenciados. É certo que a democracia impôs mudança nas instituições, mas a mudança não foi suficiente para que deixassem de ser profundamente “instituições extrativas”. Hoje a distribuição de renda em Portugal é tão distorcida quanto em qualquer plutocracia, onde a elite procura aumentar a sua fatia numa tarte que, por sua ação, se mantém inalterada desde a adesão ao Euro. As instituições políticas representativas do país estão há 20 anos sob ataque de um único partido político, a elite política, e parecem decididamente frágeis.

Não espanta o empobrecimento relativo de Portugal no contexto da União Europeia (UE), a queda no ranking do índice de perceção da corrupção, a perda da categoria de “país totalmente democrático”, a péssima performance no combate à pandemia, a incapacidade de fazer coisas simples como elaborar um plano para aplicação das vacinas oferecidas pela UE, o valor da economia paralela a rondar os 30% do PIB oficial, os custos financeiros da corrupção, os sinais de desorganização, e a ineficácia e ineficiência do Estado para assegurar a sua função. Creio que não restam dúvidas que há uma quebra de confiança no governo do Estado, e nos índices de integridade e capacidade dos servidores públicos para o cabal e expectável exercício das suas funções. Lamentavelmente, o país parece ter saído do Narrow Corridor, de modo que o despotismo intensifica-se e não fosse a pertença à UE, que garante a sobrevivência, caminharia aceleradamente rumo ao autoritarismo.

Em linha com o que escreveu Eça de Queiroz, em 1867, sentimos hoje que “Ordinariamente todos os ministros ... discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a conceção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o Estadista. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”. Mas poderia citar-se também Miguel Torga, que em 1958, escreveu “O mais trágico da vida portuguesa é ela ser uma inocência crónica, não sei se fingida, se verdadeira. Desde as patifarias do passado às atuais, tudo nos aparece sob a cor rosada da perfeita paz de espírito. Os outros, ao menos, redimem-se na meditação e na compreensão. Ou alguns meditam e compreendem pelos restantes. Aqui é esta monstruosa leviandade coletiva, que vai do governante ao governado, do avô ao neto, do culto ao inculto. Ninguém, erra, ninguém é responsável, ninguém se sente culpado. É uma bebedeira nacional de boa consciência”.

Vivendo em democracia, muitos pensam que estamos protegidos porque a maioria tem sempre razão. É mentira. Em Portugal, sem fé, a maioria dos cidadãos abstém-se de participar na democracia. Acresce que a história nos enche de exemplos de ditadores que ganharam eleições democraticamente. Também não é certo que o povo faça sempre as melhores escolhas: entre o bem (Jesus) e o mal (Barrabás), há 2021 anos o povo escolheu o mal.